sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

A Beata Maria Araújo e o Milagre de Juazeiro


Sertão cearense, 1889. A angústia marcava o rosto da população com a chegada de março e sem sinal de chuva. Temia-se que aquele seria mais um ano de seca – que foi de fato. Em Juazeiro do Norte, beatas varavam noites clamando aos céus para livrar o povo de mais uma estiagem. Entre as mulheres, havia uma,  humilde, de 28 anos, frágil, solteira, mestiça com predominância do negro, estatura mediana, analfabeta, chamada Maria Madalena do Espírito Santo de Araújo. 

 Casa onde morou o Padre Cícero 

Por volta das 5 horas da manhã do dia 1° de março de 1889, Padre Cícero, com pena das beatas cansadas, resolveu lhes dar logo a comunhão, a fim de que pudessem retornar às suas casas e repousar um pouco antes da missa matutina. A primeira a comungar foi Maria de Araújo. Quando o padre colocou a hóstia sobre a língua da beata, esta veio ao solo de forma inexplicável, em transe. Socorrida, verificou-se que a hóstia vertia sangue na boca da mulher. Era um milagre! 

Maria de Araújo

O fenômeno se repetiu várias vezes nas semanas seguintes. O Padre Cícero calou-se  e manteve o ocorrido em segredo. Mas a notícia logo se espalhou e chegou ao conhecimento do reitor do Seminário do Crato, monsenhor Francisco Monteiro, que resolveu organizar em julho de 1889, uma romaria com mais de três mil pessoas com a intenção de observar o fenômeno. O milagre de Juazeiro tornara-se público. 

Dom Joaquim José Vieira, bispo do Ceará entre 1884 e 1912

Dada a enorme repercussão do fato, o bispo Dom Joaquim, de Fortaleza, convocou Padre Cícero com urgência e, após interroga-lo, rejeita a ideia de que a hóstia se transformara no sangue de Cristo. Determina que o sacerdote e outros padres, igualmente  crentes no milagre, neguem em público a existência do fenômeno e que cessassem imediatamente com a veneração dos panos manchados de sangue, os quais haviam sido colocados dentro de uma urna de vidro no altar da capela de Juazeiro. 

Rua de Juazeiro nos anos 50

Por conta do milagre, tanto o Padre Cícero quanto a beata foram duramente combatidos pela cúpula da igreja que não reconhecia a autenticidade do fenômeno. A beata foi deslocada para a cidade de Barbalha e Padre Cícero, foi denunciado e julgado pelo Santo Ofício, em Roma que manteve as sanções que já haviam sido aplicadas ao sacerdote pelo bispo local: condenação do milagre, proibição de pregar, ouvir confissões, aconselhar fiéis, ministrar comunhão, etc; mas lhe permitiu regressar para Juazeiro e, dependendo da concordância do bispo cearense, voltar a celebra missa. Padre Cícero retornou a Juazeiro em dezembro de 1898. O bispo D. Joaquim temendo uma revolta popular, concedeu licença para o padre celebrar missas, menos em Juazeiro e nas vizinhanças. O sacerdote jamais conseguiria se reconciliar com a igreja.


Rua Padre Cícero, onde morou e ficou isolada em sua própria casa, por ordem do bispo Dom Joaquim, a beata Maria de Araújo

A beata Maria de Araújo ficou a partir de 1892, por ordem de Dom Joaquim, o bispo da época, segregada dentro de sua própria casa, sem poder receber visitas.  Era também proibida de falar sobre as suas visões e estigmas. Passou por julgamentos, exames de cientistas, e não deixou de negar as suas convicções em relação ao sangue que expelia de sua boca, ser algo sobrenatural. Ela dizia conversar com Jesus. Até o final de sua vida, a mulher negra, pobre, costureira, beata, permaneceu em sua casa no final da rua Padre Cícero, no Centro de Juazeiro, antiga rua do Arame.

 Capela do Socorro em 1941 

Quando faleceu, em 1914, foi sepultada em um túmulo branco à direita da entrada da capela do Socorro, mas devido a movimentação constante de romeiros no local, a igreja foi fechada por ordem do bispo. Quando foi reaberta, veio a surpresa: o túmulo da beata fora violado e seus restos mortais desapareceram. O mistério do desaparecimento perdura até os dias atuais. 


Monumento ao Romeiro

Ainda hoje o milagre de Juazeiro provoca polêmica. Para os milhares de devotos do padre Cícero, não restam dúvidas sobre a autenticidade;  já a Igreja Católica, o recusou fortemente. Há quem afirme ser o chamado milagre um fenômeno paranormal, fruto da fé exacerbada da beata Maria Araújo. Levantou-se ainda hipótese da beata ser portadora de alguma doença (infecção bucal ou no estômago), o que não tem fundamento, tendo em vista que a mulher foi examinada por vários médicos, que nada  encontraram. 

João Teles Marrocos

No entanto, o argumento mais forte contra o milagre de Juazeiro envolve João Teles Marrocos, primo do Padre Cícero. Marrocos nasceu no Crato em 1849, filho do Pe. João Marrocos Teles com uma escrava negra. Professor e jornalista, foi um dos mais destacados participantes da campanha abolicionista de 1884. Teve na vida uma grande frustração: não ter se ordenado padre, expulso do seminário em razão de sua origem “escandalosa”. Apesar disso, manteve-se como católico fervoroso, dedicando-se às orações, auxílios aos pobres e assuntos da Igreja. Colocou todo seu talento jornalístico a serviço da propaganda e defesa dos fatos de Juazeiro, escrevendo vários artigos na imprensa nacional. 

Acusam Marrocos de ser o autor intelectual do milagre. Fora ele, de fato, quem furtara uma urna de vidro no Crato, contendo os restos da hóstia e os panos manchados de sangue. Guardou esses bens como uma verdadeira relíquia sagrada, enfrentando a excomunhão da Igreja. Com o seu falecimento em 1910, a urna foi encontrada no espólio pelo juiz Raul de Sousa Carvalho, junto com um livro escrito em francês ensinando a fazer tinturas químicas, o qual teria sido utilizado pelo falecido, para transformar as hóstias em sangue. 

Ao que parece, Marrocos haveria forjado o milagre para unir os fiéis em torno da igreja naqueles tempos conturbados de seca e de passagem para a República, laica e positivista. Os defensores do milagre reagem contra essa versão. Observam que a notícia da descoberta da urna só se tornou pública em 1953, quando o juiz Carvalho publicou artigo em um jornal de Fortaleza. O jurista não informou, porém, o nome do livro de química. Especula-se que poderia ser D’Analyse Chimique. Mas este livro só seria publicado em 1903, depois, portanto, do fenômeno. Para os adeptos do Padre Cícero, Marrocos usava o livro apenas para saber se era possível fazer a transformação pela ciência e escondeu os paninhos não por temer a descoberta de uma possível farsa, mas por temer que a prova da santidade fosse destruída ao cair em mãos inimigas. 

Dia de Feira

Não estava longe de fato da verdade. A urna acabou sendo passada para Padre Cícero que a guardou na casa de uma beata de Juazeiro. Em 1948, a professora Amália Xavier, na expectativa de mostrar Juazeiro como uma terra obediente ao Clero, entregou os panos ao monsenhor Joviniano Barreto, então vigário da cidade. Este religioso imediatamente mandou queimar a urna, como se tentasse jogar o milagre nas malhas do esquecimento, o que obviamente, não aconteceu.  

extraído do livro de Aírton de Farias
História do Ceará 
fotos: IBGE e jornal O Nordeste

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