quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Mestre Noza, o Imaginário


Travessa estreita próxima ao centro de Juazeiro. Do alto da janela a imagem do Padre Cicero observa o movimento da rua. Sob seus pés, uma escadinha quase vertical se balança atada a uma corrente de ferro, e por ela, o mestre galga todas as manhãs o pequeno sobrado. No andar de cima, móveis desgastados, alguns instrumentos de trabalho, toras e lascas de madeira brigam por espaço entre as paredes volumosas de onde pendem um grande relógio e o retrato de Lampião. Aproveitando a réstia de luz que entra pela janela, Inocêncio da Costa Níck, o Mestre Noza, trabalha.

Veias de sangue mouro e índio, cortando calos e músculos. Noza encalca a ponta dos dedos na banda cega do gume do canivete, e com sua lâmina abre dois vincos profundos no rosto de Padre Cícero. Em seguida, levanta os olhos e pega outra peça de imburana de espinho, arrancada da Serra de São Pedro, ali perto.

Padre Cícero por Mestre Noza (imagem: antiguinho.blogspot.com.br)

No Cariri chama-se de imaginário quem fabrica imagens. Noza é um deles, como um velho bruxo de mãos desmesuradas que trabalharam no cabo da enxada desde os dez anos. Em 1912 virou romeiro do Padim Ciço. De ofício experimentou a funilaria e a marcenaria, mas não deu certo. Até que, com 22 anos, um velho imaginário que tinha fama de louco lhe ensinou a esculpir imagens. Sua primeira escultura foi uma Santa Luzia. Trocou-a por um carneiro.

Um dia, contou Noza, um padre italiano chegou e viu um São Sebastião, disse – esse santo não existe, foram vocês que inventaram. Desde então, todos os santos são inventos do imaginário e Noza foi o primeiro a fazer uma estátua de Padre Cicero. Um dia, escolheu a mais bonita e foi mostrar para o Padim. O “santo” pegou a imagem e fez uma cara de quem está achando esquisito. Disse: “menino, eu já tenho essa corcunda assim?”

Juazeiro - 1911

Aprendeu Noza a fazer xilogravuras e abriu muitas capas de cordel, como a do homem do maxixe e a dos cantadores. “Eu faço Lampião, Maria Bonita e Antônio Conselheiro, nunca fui empregado de homem nenhum. Noza bate nos peitos e sorri meio sem jeito, e tenta explicar seus passeios noturnos “penso que na outra encarnação eu era um bicho da noite. Um bicho branco e muito bonito reluzindo no escuro, andando nos caminhos sem fim da mata e entrando pelas ruas esquecidas da cidade”.

Mestre Noza morreu em 1983, aos 86 anos de idade. 

fonte: O Ceará dos Anos 90 - Censo Cultural

         

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Antônio Villanova e Antônio Conselheiro

Nascido em Assaré, Antônio Villanova decidiu, ainda muito moço, emigrar para o interior da Bahia, no que foi acompanhado por sua esposa e por seu irmão Honório. Uma vez chegado ao destino, estabeleceu-se com pequeno e próspero negócio numa das cidades vizinhas do então florescente arraial de Canudos. O comércio começou a crescer, dando-lhe lucros satisfatórios e larga freguesia.

Arraial de Canudos, reduto de Antônio Conselheiro e seus fanáticos seguidores. Ficava em Belo Monte - BA 

Foi então que começaram a aparecer os fanáticos do Conselheiro, que lhe faziam descrições favoráveis da nova povoação, efetuavam compras vultosas e insistiam com ele para ir se estabelecer por lá. Seduzido pela esperança de fortuna e certo do bom acolhimento, mesmo pelas circunstâncias de ser também cearense o novo ídolo messiânico, Villanova acabou se instalando definitivamente no arraial agitado, onde se erguiam casas todos os dias do ano e onde o comércio era deveras promissor.

Arraial de Canudos

Com o passar do tempo, tornou-se Canudos uma praça de guerra e, como sua ascendência sobre os jagunços já se fizera sentir de modo insofismável sobre ele, bem a seu pesar recaiu o voto dos principais no sentido de assumir o comando de determinado setor das operações militares, além de uma espécie de juizado de paz sobre a cidade rebelde.

Passaram, no entanto, os tempos favoráveis das vitórias espetaculares dos insurretos sobre as forças do Estado, e sucederam-lhe os tempos difíceis de fatal decadência em que, pouco a pouco, foi se apagando a estrela do Conselheiro e da revolução chefiada por ele. Já a maioria das construções de Canudos haviam sido destruídas. O cerco levado a efeito pelas forças legais assumia caráter cada vez mais definitivo, enquanto a fome e a sede completavam os horrores sofridos pelos bravos guerrilheiros, bem dignos de outro ideal.

Quando, ao atravessar o arraial para a igreja nova, recebeu o Conselheiro a bala que o pôs de cama e mais tarde o matou, aos olhos dos demais, morreu ali, a última esperança. A vista do grande dilema – fugir ou esperar pelo próximo ataque – Villanova optou pela primeira alternativa.

Antes, porém, fiel às suas tradições de lealdade, foi conversar com o endeusado profeta. Fez-lhe ver o esgotamento geral; alegou os serviços prestados à revolução, só para não desmerecer da confiança nele depositada, sem o menor ardor messiânico dos outros. Invocou o triste estado da família, literalmente morrendo de fome, sendo ainda de notar que o irmão Honório, ferido e inválido, exigia cuidados especiais. Feita a exposição, pediu-lhe licença para ir embora.

os seguidores do Conselheiro foram feitos prisioneiros, depois do ataque a Canudos

Partiria à meia noite, quando todos estivessem adormecidos. Atravessariam a zona perigosa pelo leito do rio que banhava a cidade; e se a sorte lhe fosse favorável, voltariam ao Ceará, para nunca mais se arriscarem por terras estranhas...– Faça sua viagem, concedeu Antônio Conselheiro, cuja voz de tão alquebrada já parecia sair da eternidade. 

Depois de haver montado o ferido num jumento, partiram os fugitivos, pisando de mansinho e contendo a própria respiração, receosos de ser descobertos pelos soldados do governo, que já ocupavam a margem oposto do rio. Não era pequeno o risco de serem abatidos ali mesmo, como rezes no bebedouro. Viajaram vários, intermináveis dias, na expectativa de um encontro indesejado, caatinga adentro, pelo leito dos córregos ou pelas veredas do gado. Quando se viram fora da zona de perigo e alcançaram o solo pernambucano, tinham as roupas em farrapos e os pés em carne viva.

Assaré em épocas distintas com a Igreja matriz de N. S. das Dores (fotos IBGE-anos 50 e Vânia Dias- atual)

Chegando a Assaré, recolheu-se Antônio Villanova à propriedade onde viviam seus parentes e ali, esquecido do mundo, viveu até 1913. A esse tempo foi lhe bater à porta um emissário de Floro Bartolomeu, levando uma carta do Padre Cícero que pedia sua presença, com urgência em Juazeiro. Achava-se o Juazeiro em véspera de proclamar a inconfidência que apeou do poder o governador Franco Rabelo e dali se alastrou por todo o Estado.

Floro Bartolomeu, no centro da foto 

Queria-o o político baiano para liderança dos sertanejos inexperientes que iam partir para a luta, como também para dirigir o serviço de defesa em que Canudos tanto se havia distinguido. Antônio Villanova foi irredutível. Nunca mais empunharia arma contra o governo, fosse onde fosse. O que fez foi dar, ante os insistentes pedidos, algumas noções práticas do sistema de valados que logo circundaram a cidade rebelada e que admiravelmente a guarneceram naquele instante decisivo da história do Ceará.

Cumprida a missão Villanova regressou à terra natal, incógnito como tinha saído, para nunca mais dar o ar da graça fora de Assaré. Era, todavia, um homem leal, bravo, circunspecto e diligente, à altura, portanto, de uma grande responsabilidade.

Fonte: Villanova e Antônio Conselheiro, do Padre Azarias Sobreira 
Publicado na Revista do Instituto do Ceará – 1948 
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