quinta-feira, 29 de junho de 2017

A Guerra dos Bárbaros

Historiadores da vida política do Ceará emprestam a devida importância a rebeldia indígena contra os maus tratos dos lusos. Senhores absolutos da extensa área geográfica, que ia das areias que emolduram o Oceano Atlântico até o sopé do Araripe, e dotados do sentimento dessa propriedade, os índios não admitiam sequer que esse território fosse devassado. Os Tabajaras na Ibiapaba, os Potiguaras no Baixo Jaguaribe e os Cariris no vale do mesmo nome, cedo se viram atingidos pelo avanço dos estrangeiros, que invadiam suas terras em busca de minérios, e posteriormente colonizá-los, submetendo os nativos ao cativeiro.


Contra essa ocupação, as nações indígenas se levantaram, nos idos de 1630. À falta de meios para enfrentarem sozinhos os invasores de seu território, fizeram aliança com os holandeses, a única forma encontrada para combaterem a interiorização imposta pelos portugueses, cujo processo de ocupação de terras não admitia resistências ou barreiras.
Quando o processo de concessão de sesmarias começou a ser implantado, os nativos sentiram recrudescer nos luso-brasileiros a ganância pela terra, e tornaram mais feroz sua resistência àqueles que consideravam invasores do seu território.

As Sesmarias eram concedidas em áreas férteis, geralmente ao longo dos cursos dos rios. O objetivo da doação, era tornar a terra produtiva e garantir o povoamento dos sertões. Na foto do IBGE, a ribeira do Jaguaribe nos anos 50.

Os títulos de posse que os sesmeiros recebiam, eram via de regra, constantes de três léguas de terras (e faixas adjacentes), e envolviam preferencialmente as áreas mais férteis, marcadas pelos cursos dos rios, justamente o habitat dos índios, onde a caça era farta e a pesca complementava a provisão alimentar.

Opondo-se à invasão dos colonos, a tribo dos Janduins habitantes das regiões das ribeiras do Açu, Mossoró e Apodi, iniciou um conflito em defesa de suas propriedades e de sua própria sobrevivência, dada sua condição de silvícola, em franca desvantagem diante dos invasores apoiados pelo governo colonial. Essa rebelião, que ficou conhecida como “Guerra dos Bárbaros”, teve início em meados dos anos 1680, a ela aderindo imediatamente as demais nações indígenas.

Tal guerra durou quase 50 anos, indo das últimas décadas do século XVII até a segunda década do século XVIII. Por pouco os nativos não destruíram os fundamentos da colonização portuguesa. Ao se rebelarem, os Janduins mataram, saquearam e incendiaram tudo que pertencia aos colonos. Nos anos seguintes a rebelião propagou-se pelo vale do Jaguaribe no Ceará, alcançando os mais distantes sertões e chegando aos territórios de outras capitanias.

O conflito abalou a região. Os colonos, desesperados, faziam dramáticos apelos às autoridades coloniais, que enviaram tropas e mais tropas, compostas por negros e índios aliados dos colonos, por degredados e criminosos, os quais receberiam o perdão por seus crimes por lutar contra os revoltos.

Tentando por um fim ao confronto, o governador geral do Brasil, Frei Manuel da Ressurreição, decidiu, no ano de 1689, requisitar bandeirantes de São Paulo. A tais sertanistas prometiam recompensas vantajosas, como a doação de sesmarias e venda como escravos de indígenas derrotados.

A presença dos bandeirantes, contudo, não pôs fim aos conflitos. Aproveitando-se da rivalidade existente entre os índios, e prometendo presentes, paz e terras, os conquistadores fizeram alianças com determinados grupos de nativos usando-os para combater a rebelião. Também ergueram fortins, como o forte Real de São Francisco Xavier (no local onde hoje se encontra a cidade de Russas), construído em 1695 ou 1696, para melhor combater os índios e proteger os colonos da Ribeira do Jaguaribe.

Forte de São Francisco Xavier da Ribeira do Jaguaribe, (1695/1707). Mandado construir por Caetano de Melo Castro, depois abandonado. (imagem do livro Inscrição Mural-breve história dos fortes do Ceará) 
   
Dentre os bandeirantes requisitados para o combate aos indígenas, estava Manuel Alves Morais Navarro, um dos maiores matadores de índios da história do Brasil. Em 1699, Navarro reuniu os Baiacus aldeados – que o tinham ajudado a combater outros índios – prometendo-lhes ricos presentes e, enquanto dançavam, desarmados, o paulista ordenou um repentino ataque com armas de fogo. Foi uma tragédia: morreram cerca de 500 índios, e outros 200 foram levados como escravos para o Rio Grande do Norte.

Esse levante dos indígenas, que ensanguentou grande parte do Nordeste colonial, foi um dos mais graves conflitos raciais ocorridos no Brasil seiscentistas, segundo o historiador Carlos Studart Filho, tendo se alastrado pelas capitanias do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Piauí. Somente depois de muita luta, de grandes derrotas impostas aos capitães-mores e seus exércitos de infantes, os Janduins e seus aliados foram vencidos, para tranquilidade de Sua Majestade, na corte de Lisboa e para sossego do governador-geral, em Pernambuco.

Mas a grande batalha dos indígenas pela posse de suas terras continuou. No ano de 1706, o governo da colônia  autorizou o fornecimento de armas a todos os brancos moradores da Capitania do Ceará visando à autodefesa. Em 1713, os índios realizaram mais um grande levante. Baiacus, Anacés, Jaguaribaras, Ariús, Arariús, Jenipapos, Canindés e Tremembés, reunidos, atacaram Aquiraz, então sede da capitania, ajudados por muitos dos índios aldeados e que “serviam” aos brancos há anos.

No confronto em Aquiraz, cerca de 200 habitantes morreram defendendo a vila, enquanto os demais moradores fugiram desesperadamente, sob flechas, lanças e tacapes, buscando a proteção dos canhões da fortaleza de N. S. da Assunção, em Fortaleza.

Aquiraz - Casa de Câmara e Cadeia - foto IBGE - anos 50

Aquiraz só não foi completamente destruída devido à ação do coronel João de Barros Braga, grande latifundiário das margens do Jaguaribe, que liderava a milícia local, a qual se compunha basicamente por mestiços e índios aliados, todos vestidos de couro como os vaqueiros, bem armados e especializados em combates.

Soubera o coronel do levante indígena e marchara com seu regimento para socorrer Fortaleza, fazendo os índios recuarem até as margens do Rio Choró (no trecho que abrange os municípios de Pacajus, Beberibe, entrando em Aracati), travando uma monumental batalha que durou um dia inteiro de encarniçado combate. Os índios acabaram derrotados. Foi um golpe mortal na confederação indígena.

Terminada a guerra de 1713 – conclui o historiador Carlos Studart Filho – estava morto para sempre o sentimento de altivez e rebeldia do nativo cearense. Encerrava-se a fase heroica da resistência armada dos filhos da terra aos invasores brancos.

Fontes:
Anuário do Ceará 1979/80
História do Ceará, de Airton de Farias