quinta-feira, 24 de maio de 2018

As Aventuras do Padre Verdeixa, O Canoa Doida


Alexandre Francisco Cerbelon Verdeixa, vulgo Canoa Doida, deixou fama imperecível na crônica histórica do Ceará. Não se sabe ao certo o seu local de nascimento: Rio do Peixe, na Paraíba, Goiana, em Pernambuco, ou Crato, no Ceará. Ano do nascimento, 1803. Figura lendária, desde pequeno se destacou pelas travessuras maldosas no gênero do mítico Pedro Malasartes. Não conheceu o pai. A mãe Dona Feliciana, cavilosa e piedosa, oscilava entre as asneiras do marido e as diabruras do filho, casada em segundas núpcias com um professor de latim, boêmio e piegas, Joaquim Teotônio Sobreira.

Seminário de Olinda, fundado em 1551 - foto G1/Globo

Em 1824, Verdeixa passou das traquinadas da infância às aventuras da adolescência, alistando-se nas forças republicanas da revolução de 1824, que sob o comando de José Pereira Filgueiras e Tristão Gonçalves de Alencar, ocuparam a vila cearense de Jardim, tomando parte no massacre dos presos e na roda de pau que lhes aplicou, dando de cacete com as duas mãos em muitos pacientes, até caírem inanimados. Após a derrota dos rebeldes, passou-se para os legalistas do coronel Agostinho José Tomás de Aquino.
Durante seis anos, de 1824 a 1830, cursou o seminário de Olinda, ordenando-se em 1831 e sendo logo nomeado vigário de Lavras, no sul do Ceará. 

Igreja Matriz de São Vicente Ferrer, em Lavras da Mangabeira. Padre Verdeixa foi o vigário entre 1830 e 1831. Nesse período realizou o batizado de Fideralina Augusto Lima. 
Foto IBGE

Como e porque se decidiu a seguir a carreira eclesiástica, quando até então não denotara a menor propensão, e os pendores naturais do seu espírito o inclinavam a outros rumos, é coisa que jamais se conseguiu saber. O que se poderia esperar de um sacerdote sem vocação formal, solto num meio agitado como o Cariri daquele tempo? Teceu ali uma enredada diabólica, malquistando o coronel Agostinho com Pinto Madeira, o infeliz rebelde de 1832, satirizou o perverso advogado Simplício José da Rocha, levou à ruína o juiz leigo Antônio da Rocha Moura, desancou em versos o famigerado João André Teixeira Mendes, vulgo canela preta, e até nos casamentos que celebrava, ofendia os noivos com pilhérias indignas do seu ministério. Daí o ódio que o cercava, e o obrigava a viver sempre de sobreaviso, ocultando-se ou fugindo.

Palácio da Luz, sede do governo estadual até início dos anos 60

Foi obrigado a deixar o sertão e vir para Fortaleza, onde logo se tornou inimigo do presidente da província, o padre e senador José Martiniano de Alencar. Enganou os índios mansos, que ainda viviam na povoação de Arronches, fazendo-os assinar uma representação em termos tais que os levou à cadeia. Proferia ofensas por toda parte contra o presidente Alencar, e caçado pela polícia, refugiou-se na casa do comerciante português Martinho Borges, obrigando-o a hospedá-lo sob ameaça de denunciá-lo às autoridades, por alguns deslizes cometidos pelo comerciante. Verdeixa costumava insultar o presidente Alencar debaixo das janelas do palácio do governo, gritando-lhe a alcunha – padre Cobra, e fugindo imediatamente a galope.

Juiz de paz em Baturité, praticou as maiores arbitrariedades. Quando o quiseram prender, escondeu-se num buraco coberto por uma tábua sobre a qual sua mãe, placidamente fazia rendas, trocando bilros na almofada. Envolvido numa tentativa de homicídio, contra o presidente brigadeiro José Joaquim Coelho, defendeu-se pessoalmente no Tribunal do Júri, encrencando seu companheiro, o velho capitão-mor Barbosa, quando este lhe perguntou porque lhe fizera tanto mal, respondeu que, se ele fosse solto, passaria fome na cadeia, porque até ali vinha comendo do que a família do respeitável ancião mandava. 

Corria que tinha o dom da presciência, avisando as pessoas dos desastres iminentes que as ameaçavam e adivinhando a chegada das patrulhas que o procuravam. Tantas fez que se viu obrigado a mudar de cidade. Embarcou para o Sudeste e conseguiu ser nomeado vigário de Carapebus, na província do Rio de janeiro. Ali revoltou tanto os fiéis, que acabou amarrado num cavalo e levado até os limites da paróquia. Encontrando um desconhecido pelo caminho, disse-lhe que aquela gente o amava tanto, que o levava daquele jeito para que ele não os abandonasse.

Dizia o historiador João Brígido, que o Padre Verdeixa tinha uma especialíssima devoção pelo Sacramento do Matrimônio. De todas suas funções como religioso, a que mais o aprazia era exatamente a celebração das núpcias. Deixou de comparecer a incontáveis celebrações de sua inteira responsabilidade, como Batizados, Primeira Eucaristia, Unção de Enfermos, e outras, mas até onde se saiba, nunca faltou a um casamento! Sempre diligentíssimo, chegava onde quer que fosse, sob qualquer intempérie climática, com horas de antecedência da celebração.

Acontece que, o ardiloso e furtivo Canoa Doida, ouvia primeiro a confissão da noiva, e uma vez sabedor da vida pregressa da nubente, ameaçava a infeliz de revelar ao futuro esposo e até mesmo a toda urbe, certos pormenores daquela confissão. Assim, angariava com facilidade os favores sexuais da noiva, sob o prenúncio de dar com a língua nos dentes. A noiva poderia conceder seus favores ali mesmo, in situ (dentro do confessionário) ou preferencialmente no interior da sacristia, dispositivo que oferecia maior espaço e conforto, prestando-se com maior eficiência à volúpia e demais caprichos sexuais do nosso Canoa Doida. 

Mestre em ações indecorosas, quando não obtinha da noiva confissões mais “significativas”, não se continha, e fazia toda sorte de propostas imorais. Foi mesmo espancado por um noivo que não pôde suportar os excessos do padre. Era uma alma feita de violentos contrastes. Sabe-se que deixou dois filhos e duas filhas. Deputado provincial nas legislaturas de 1848 e 1868, apesar dos 20 anos que separam os dois mandatos, em ambos, nada fez, senão pilhérias e colocar os colegas em situações ridículas.

Santa Casa de Misericórdia com apenas 1 pavimento. O 2° só foi construído em 1920 (foto Arquivo Nirez)

De Fortaleza costumava sair para as vilas próximas – Maranguape, Pacatuba e Baturité. Irrequieto e andarilho, acabou se mudando para Aracati, de onde regressou moribundo à capital, embarcado num pequeno veleiro. Morreu pouco depois na Santa Casa de Misericórdia, segurando nas mãos um pacote com 400 mil reis pelos quais vendera um velho escravo que o servia. Era o dia 18 de fevereiro de 1872.

Fontes:
À Margem da História do Ceará, de Gustavo Barroso
Verdeixa, o Canoa Doida. Disponível em <http://nehscfortaleza.com/index.php/artigos/item/232-verdeixa,-o-canoa-doida.html>   

sexta-feira, 11 de maio de 2018

A Igreja que criou uma cidade


Quixeramobim, antigamente Campo Maior de Quixeramobim, no coração do Ceará, é uma cidade tipicamente sertaneja, da época do Ciclo do Gado ou da Civilização do Couro. Como muitas outras que se assemelham, consta duma praça principal em que desembocam várias ruas, que se liga a outras praças e no meio da qual se ergue a imponente matriz que substituiu a capelinha primitiva. Foi fundada em 1755, pelo portuense capitão Antônio Dias Ferreira. 


Filho de João Dias Ferreira e de Bernarda de Jesus Ferreira, adquiriu o capitão Dias Ferreira, às margens do rio que o gentio chamava Ibu, terras que pertenciam a Gil de Miranda e sua mulher Ângela de Barros, bem como ao padre Antônio Rodrigues Frazão, região esta, aliás, da qual foi sesmeiro o alferes Francisco Ribeiro de Sousa, com data de 7 de novembro de 1702.  Fundando nestas terras a Fazenda de Santo Antônio do Boqueirão, logo tratou de erigir nas proximidades da sua casa, uma pequena capela sob invocação de Santo Antônio de Lisboa ou Pádua, mais tarde, Santo Antônio de Quixeramobim.

Casa de Engenho em Pernambuco. A Capela é quase uma continuação da residência
imagem: http://www.ensinarhistoriajoelza.com.br/para-colorir-fazenda-de-cana-do-brasil-colonia/

O costume dos senhores feudais pernambucanos, edificando dentro ou junto das casas grandes dos engenhos, templos ou santuários para orações, estendeu-se ao Ceará, com a praxe de se erigirem capelas ao lado da casa da fazenda, próximas aos currais. Construindo naqueles inóspitos sertões o pequeno templo, lançou o capitão Antônio Dias Ferreira uma daquelas sementes que agiram na formação brasileira – a capela. Criou também, como observa João Brígido, atraindo-lhe moradores, Quixeramobim.

Quando Dias Ferreira situou naquele rincão sertanejo sua fazenda de criar, o templo mais próximo, a capela de Nossa Senhora da Conceição do Banabuiú, ficava na distância de vinte léguas. Daí o pedido que ele e seus vizinhos dirigiram, em 1730,  ao bispo de Olinda, para a criação de um pequeno templo, onde pudessem frequentar os ritos, dedicado a Santo Antônio e tendo como patrimônio meia-légua de terra e 30 vacas, o qual foi entregue ao culto no ano de 1732.


imagem disponível em: http://theses.univ-lyon2.fr/documents/getpart.php?id=lyon2.2009.sulinabezerra_a&part=173537

Vinte e cinco anos mais tarde, a capelinha arruinada era substituída pela igreja que seria a futura matriz da futura cidade. Ergueu-a o português Antônio Dias Ferreira, homem solteiro, de grande fortuna, que possuía vinte léguas de terras, a começar do lugar Espírito Santo, além de Boa Viagem, até a barra do Sitiá, onde tinha grandes fazendas de cavalar e muar com feitorias de escravos de Angola. O rico devoto, construindo aquele templo, mandando até vir artistas de Portugal, trazendo o que a arte produzira de melhor no Ceará – uma igreja vasta e bem decorada.

Imagens, alfaias e instrumentos do culto vieram de Portugal; mas os sinos foram fundidos no local, em fornos levantados de pedra e cal à margem do riacho Capadócio, junto à sua foz no Rio Quixeramobim. À margem esquerda deste, estendeu-se a primitiva vila de Campo Maior, entre os riachos da Palha e Capadócio, dominada pelo vulto da igreja de Santo Antônio, erguida num pequeno monte. Depois de fundidos, os sinos foram conduzidos em procissão pelas antigas ruas das Formigas, da Bem-aventurança, do Juazeiro e da Viração, carregados em andor pelo povo, sendo bentos e batizados com os nomes de Antônio – o maior deles – Francisco e Manuel em honra dos santos respectivos. O sino grande, quebrado em 1861, foi substituído por outros feitos em Pernambuco, em 1868 e 1869. 

No dia 13 de junho de 1789, levantava-se o pelourinho, símbolo das franquias municipais, na praça da matriz.  Não teve o fundador da fazenda Boqueirão, e da Igreja de Santo Antônio, a ventura de ver esse templo elevado à categoria de matriz, a 15 de novembro de 1755. Falecera um ano antes, deixando as obras por terminar. Estas somente vieram a termo no ano de 1770, quando já criada a freguesia sob a direção do capitão João Francisco Vieira. Antônio Dias Ferreira dispusera em seu testamento que, se falecesse no Jaguaribe ou em Quixeramobim, fosse enterrado em sua capela de Santo Antônio, vestido com o hábito de São Francisco, celebrando-se várias missas em sua memória.

Na frente da igreja, um Cruzeiro e o piso tosco no entorno. Foto IBGE s/data
No mesmo ano em que foi instalado o município de Quixeramobim, o que se realizou em 13 de junho de 1789, o capitão Narciso Gomes da Silva fez na primitiva matriz algumas reformas. Com o passar do tempo e com o crescimento da povoação a que dera origem, outras igrejas foram sendo erguidas naqueles sertões, como filiais da velha matriz: a do Rosário, a cargo dos negros; a da Conceição do Sitiá; a de Jesus Maria, José, de Quixadá; a de Boa Viagem; a da Glória, em Maria Pereira. Muitos anos se passariam até que essas filiais passassem a igreja matriz. Somente em 1932 se criaria a freguesia de Maria Pereira, desmembrada de Quixeramobim. 

Ate 1854 faziam-se na velha matriz os enterros dos que morriam na vila e seus arredores. As cinzas dos mortos enchiam o templo, ligando as gerações que se sucediam nas lides do sertão. Em 1857 começou-se a achar o templo diminuto para o número de fiéis que costumavam frequentá-lo, o que denota o crescimento da população local, apesar da grande seca de 1845. Pensou-se em abrir arcadas nas paredes que dividiam a nave dos corredores laterais. Mas somente na década de 1880 a 1890 se começariam os trabalhos da reforma. 

O início dos trabalhos coincidiu com a terrível epidemia de febres perniciosas, que o povo, ainda crente em miasmas, atribuiu ao fato de se revolverem as velhas campas do templo. Em 1902 o vigário monsenhor Salviano Pinto Brandão retomou as obras da matriz, entregues à direção do coronel Rafael Pordeus da Costa Lima e a habilidade de Jacinto de Matos, arquiteto e decorador e Emilio Moreno, mestre de obras.


Com suas duas torres e o frontispício neoclássico, a atual matriz de Quixeramobim conserva a estrutura fundamental da construção barroca do século XVIII, quando tinha uma única torre e o seu frontão ascendia em curvas simétricas. Mudou bastante sua forma; mas a alma do templo quase três vezes centenário continuou a mesma. Há 286 anos Antônio Dias Ferreira plantou seus alicerces no agreste solo sertanejo que fecundou com o suor do seu rosto e desde essa época a sombra de sua cruz abençoa aquele chão e a voz dos seus sinos congrega os fiéis para as alegrias e para as tristezas.

Extraído do livro: 
À Margem da História do Ceará,
De Gustavo Barroso 
fotos: acervo IBGE