quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

As Primeiras Visitas ao Ceará


A primeira notícia oficial de impacto e de realce histórico referente ao Ceará, após o descobrimento do Brasil, seja por Pinzon ou por Cabral, aparece pouco depois de um século, em 1603, quando Pero Coelho de Souza, homem nobre e fidalgo, casado, soldado velho, resolveu, por sua conta e risco, organizar uma bandeira para recuperar os prejuízos que amargou em consequência de uma desastrada parceria com seu cunhado, Frutuoso Barbosa, então donatário da Capitania da Paraíba.


Pretendia, conforme acerto com o então governador geral Diogo Botelho, procurar  minas de ouro e prata, expulsar os franceses que desejavam montar a França Equinocial no Maranhão e estabelecer a paz com os nativos. Não alimentava qualquer pretensão civilizatória.

Saiu da Paraíba a pé, rumo ao Maranhão, acompanhado de uma comitiva formada de 65 soldados (entre eles o jovem Martim Soares Moreno) e 200 índios frecheiros (ou mansos, já sob domínio do conquistador), até atingir, dias depois, a foz do Rio Jaguaribe, onde, após um reconhecimento preliminar da região, identificou uma área rica em salinas, grande quantidade de âmbar e algodão.

Deu prosseguimento à sua expedição até atingir a Ponta do Mucuripe, rumando depois, em direção à Ibiapaba, quando travou combates com os índios tabajaras e comandos franceses, então aliados dos nativos. Derrotando-os, mas sofrendo consideráveis baixas, retomou sua viagem em direção ao Maranhão, atingindo o rio Parnaíba, no Piauí, quando, em razão de seus homens estarem exaustos, esfarrapados e famintos, decidiu retornar ao Ceará.

Estabeleceu-se na Barra do Ceará, onde levantou um pequeno forte, chamando-o de São Tiago. A região em redor chamou de Nova Lusitânia, que imaginava um dia ser a Nova Lisboa, a capital. Nos seus relatos, Pero Coelho refere-se várias vezes ao algodão, “uma planta que aparece por todos os lados”.

uma cruz assinala o local onde esteve o desaparecido forte de São Tiago, na Barra do Ceará (foto do arquivo Nirez)

A presença de Pero Coelho de Souza nesse lugar, formado por uma tosca paliçada de paus de quina e umas poucas casinhas de taipa, foi rápida. Seguiu para Recife, a fim de recolher sua mulher Thomazia e seus cinco filhos, para se estabelecer definitivamente em São Tiago. Em seu lugar, deixou Simão Nunes Correia e cerca de 50 homens. No contrato que fez com o governador, recebia 1 mil cruzados ao mês, que lhe seria repassado por João Saromenho.

Um ano e meio depois de sua saída da Paraíba, acompanhado de outros 50 homens, já com a família, viajando numa caravela, Coelho de Souza chegou a São Tiago, e logo percebeu que o relacionamento entre seus soldados e os índios estava deteriorado. Era o resultado da rigorosa obediência que cobravam dos índios. Para impor sua autoridade, implantou o ódio e a discórdia.

É-lhe atribuída a pecha de sanguinário, tendo sido acusado e responsabilizado também pela morte de índios. Até hoje a historiografia do Ceará não entende as razões pelas quais Coelho de Souza exagerou nas suas obrigações. Sua presença em Itarema ou na Barra do Ceará não gerou consequências.

Instigado pelo inimigo e por isolados franceses que ainda se achavam na região, decidiu mudar-se para o outro lado do Estado, para a foz do Rio Jaguaribe. Existem, entretanto, duas outras razões que forçavam sua retirada de São Tiago: o assédio constante e cada vez mais agressivo dos índios locais – Tremembés – e uma rigorosa seca (1605-1607) que assolava o Ceará. Sua retirada era questão de sobrevivência.

Para completar, João Saromenho não lhe pagava. Denunciado, este foi julgado e condenado por não ter pago os soldos do seu superior. Cumpriu pena de detenção na prisão de Limoeiro, em Lisboa, onde morreu.

Estrada em jaguaribe. (se era assim nos anos 1960, imagine em 1600...) foto IBGE
 
A viagem de Pero Coelho de Itarema ou da Barra do Ceará para a foz do Jaguaribe coincidiu com o auge da estiagem, em 1606, cuja mortalidade atingiu índices catastróficos. Os rios e reservatórios naturais de água estavam secos, as matas ciliares murchas, produzindo um quadro dantesco de miséria, fome e desespero. Pelas trilhas espalhavam-se as marcas da destruição com dezenas de carcaças de animais.

Havia gente caminhando sem destino, pelas trilhas sem fim. Faltava água e alimentos, as doenças se proliferavam com rapidez. Para completar a dramaticidade do quadro, apareceu nos céus o cometa de Halley, que os índios chamavam de “tata-bebe”, ou fogo voador, de acordo com o registro feito pelo padre missionário Luiz Filgueira no seu diário pessoal. O temor era procedente. Os cometas eram considerados pelos antigos como fenômenos atmosféricos. Nenhum outro fenômeno celeste despertou tanto interesse como os cometas, talvez por inspirar aos povos antigos, terror e superstição.

Em sua dolorosa viagem, Coelho de Souza enfrentou os momentos mais cáusticos da seca, perdeu alguns soldados e o seu filho mis velho, que morreram de inanição, de fome e de sede. Thomazia, mulher frágil, chegou ao Jaguaribe esquelética, transportada numa espécie de maca, quase morta. Mas resistiu. 
Forte dos Reis Magos em Natal RN (imagem blog AratacAndarilho)

Do Jaguaribe, com pouco mais da metade dos 50 homens que tinham iniciado a triste jornada, Coelho de Sousa deslocou-se até o Forte dos Reis Magos em Natal, depois à Paraíba, onde embarcou para Lisboa. Na Corte fez um relato dramático das suas andanças pelo Nordeste brasileiro, na perspectiva de receber uma indenização pelos seus serviços. Não sensibilizou ninguém, porque todos conheciam sua impetuosidade. Martim Soares Moreno, que o acompanhara na primeira bandeira como soldado, registrou na sua Relação, sem identificar nomes, que “ali (em São Tiago) houve muito desassossego dos índios sem razões”.

Morreu sem receber nada, devido ao insucesso de sua missão fracassada, da mesma forma como fracassou a primeira tentativa de colonização do Ceará. 


Extraído do livro
Caravelas, Jangadas e Navios uma história portuária
de Rodolfo Espínola

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

O Serviço Militar e a Gestão do Governador Sampaio

Na Capitania do Ceará, no período colonial, uma das grandes preocupações tanto das autoridades quanto das elites latifundiárias era controlar a população pobre e os indígenas, obriga-los a trabalhar e a produzir, sobretudo quando da expansão da cotonicultura no final do século VXIII. Uma das formas utilizadas para coagir a população era ameaça de recrutamento para os grupamentos militares e policiais. Prática largamente usada, o recrutamento colocava em pânico a massa, pelo tratamento brutal dispensado aos convocados.

Praça Carolina, atual Praça Waldemar Falcão 
No dia 3 de setembro de 1817, o Governador Sampaio recebia uma Carta Régia comunicando-lhe o consórcio do Príncipe D. Pedro I com a arquiduquesa Carolina Josefa Leopoldina Francisca Fernanda de Habsburgo-Lorena , que ocorrera no dia 3 de maio daquele ano em Viena, Áustria. Este acontecimento tão longínquo foi o motivo para darem o nome de Praça Carolina ao principal largo da Fortaleza de então.  O Engenheiro Silva Paulet alinharia o lado ocidental da praça que mais tarde seria ocupado por residências. Em 1814, foi construído na praça, o primeiro Mercado Público. 

Não havia critério, nem organização regular, nem planejamento. Tudo dependia das necessidades do momento e do arbítrio das autoridades. o procedimento era simples: fixadas as necessidades dos quadros, os agentes recrutadores saíam a cata das “vítimas”; não havia hora ou lugar em que se sentissem a salvo, porque os agentes invadiam casas, forçavam portas e janelas, entravam até pelas escolas e salas de aula para arrancar os estudantes.

Planta do forte de N.S. da Assunção s/data. 

Quem fosse julgado em condições de tomar as armas, era incontinenti, arrebanhado e levado aos postos. Explica-se assim, o porquê de, ao menor sinal de recrutadores próximos, a população desertasse dos lugares habitados, indo refugiar-se no mato. Logo que começavam a levar recrutas, era infalível o aumento de preço dos gêneros de primeira necessidade, porque os lavradores abandonavam as roças.
O governador Sampaio usou muito desse mecanismo para combater a vadiagem. Embora houvesse leis tratando sobre o recrutamento, Sampaio chegou a comunicar às autoridades que era preferível alistar apenas os vadios, que prejudicar a agricultura; ou seja, por conta própria o governador alterou a legislação de recrutamento (todos poderiam, em tese, ser convocados), visto que deveriam ser chamados ao serviço militar apenas os que nada produziam ou faziam, devendo ser poupados os trabalhadores da agricultura.

O Governador


Manuel Inácio de Sampaio e Pina foi um dos mais polêmicos governantes cearenses, lembrado como eficiente administrador, e ao mesmo tempo, como um homem autoritário e ambicioso. Nas realizações materiais determinou a reconstrução da fortaleza de N. S. de Assunção (10ª RM), o erguimento do primeiro mercado público da capital e a implantação do primeiro plano urbanístico de Fortaleza, projetos de Silva Paulet.

 A casa que pertenceu a José Antônio Machado e onde estiveram diversos órgãos públicos, foi a primeira sede dos Correios. Foi demolida para a construção do Fórum Clóvis Beviláqua.

Em 1812, Sampaio instalou a repartição local dos Correios (até então o correio só existia para comunicações oficiais, através dos denominados “positivos” pessoas de confiança). Mantinha permanente correspondência com as autoridades das Vilas, de quem exigia informações periódicas com o propósito de tomar conhecimento sobre os mais diversos acontecimentos da capitania.

Não se pode dissociar essa preocupação de Sampaio com o clima vivido no Brasil em decorrência das agitações revolucionárias da Europa do começo do século XIX. Em 1816, para melhor “aplicar a lei e manter a ordem” criou-se uma segunda comarca judicial no Ceará, localizada no Crato (a sede da primeira comarca passou então, de Aquiraz para Fortaleza).

Tido como homem inteligente, culto, assim dado às armas como às letras, o governador teria lançado as bases literárias do Ceará ao promover outeiros, reuniões literárias realizadas no palácio do governo.
Não obstante as realizações, Sampaio mostrou-se autoritário ao perseguir e reprimir adversários. Daí bateu-se com o capitão-mor Antônio Moreira Gomes, rico comerciante português e homem de muito prestígio na terra. Sampaio, coagindo a Câmara Municipal, conseguiu que os vereadores cassassem o posto de Gomes. Da mesma maneira confrontou-se com o ouvidor João Antônio Rodrigues de Carvalho, e com o naturalista João da Silva Feijó.

No quesito servilismo, mandou que a população da vila de Fortaleza festejasse com luminárias, por três noites consecutivas, o nascimento do filho de Dom Pedro Carlos, o infante Dom Sebastião de Bourbon e Bragança. Quando foi notificado da morte de Dona Maria I (primeira rainha reinante de Portugal), em 15 de junho de 1816, determinou que todo povo da vila e distritos vestisse luto rigoroso por seis meses e aliviado por outros seis.

Atendendo que os pobres e os escravos não podiam atender rigorosamente a esta determinação, por questões econômico-financeiras, permitiu que os homens trouxessem no chapéu e as mulheres na cabeça, qualquer retalho preto. Os que se recusassem seriam punidos com 30 dias de cadeia, para cada vez que fossem pegos sem o distintivo.

Ao reprimir a “Revolução” de 1817 no Ceará, Sampaio chegou a acusar adversários políticos de estarem envolvidos na revolta, visando assim, livrar-se dos opositores. O governador deixou o Ceará em janeiro de 1820 quando foi assumir o governo de Goiás. Faleceu em Portugal no ano de 1856. A rua Governador Sampaio no centro de Fortaleza, recebeu esse nome em homenagem a esse governante português.

Fontes:
História do Ceará, de Airton de Farias
Ceará (homens e fatos), de João Brígido
fotos do arquivo Nirez

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Frei Vidal da Penha, o Profeta do Sertão

Os missionários capuchinhos marcaram presença no Brasil desde 1612, quando Cláudio de Abbeville e Ivo d’Evreux, cada um com seus escritos, iniciaram a moderna história do Maranhão. Desde então passaram a visitar o Brasil e mais especialmente o Nordeste, onde promoviam a catequese e a evangelização da população.   

Frei Vidal da Penha foi um desses capuchinhos. Entre 1780 e 1820 pregou em toda a região nordestina e ficou imortalizado no imaginário popular por seus inflamados sermões versando sobre as virtudes humanas. Virou tema da literatura de cordel por causa de suas profecias sobre o fim do mundo. Contam que Frei Vidal, em suas andanças pelo sertão, era conduzido em uma rede. Onde chegava, juntava-se uma turma de homens que o conduzia até a próxima parada.


O povo simples do sertão tinha muita fé no religioso que era considerado um santo. Nos lugares que passava, tinha o costume de erguer igrejas e cruzeiros nos locais em celebrava missas e fazia pregações. Muitos deles foram marcos para o começo de povoados e futuras cidades, a exemplo de Itapajé e Bela Cruz no Ceará. Muitas outras localidades contaram com alguns exemplares dessas edificações, hoje desaparecidas, testemunhos da passagem de Frei Vidal, por várias regiões do Ceará.     

Seu verdadeiro nome era Vitale da Frascarolo. O missionário também é citado como Frei Vidal de Fraccardo. O nome “da Penha” é em alusão ao convento de Nossa Senhora da Penha, localizado em Recife em Pernambuco, onde o mesmo vivia antes das suas missões. Italiano que peregrinava pelos sertões de Pernambuco e Ceará nos últimos anos do século XVIII, o frade tinha como marca registrada a catequese dos habitantes e índios da região. Mas Frei Vidal não catequizou apenas selvagens. Contribuiu com seus esforços para uma outra catequese – a do civilizado – talvez a mais difícil, mostrando do púlpito seus erros, suas paixões, seus desvios, chamando-o ao bom caminho.

Certo dia o religioso missionava em Campo Grande sobre a Serra da Ibiapaba. Num dos sermões falou sobre os sambas e toques de viola, então muito em voga nos sertões cearenses. Do púlpito, pediu que os possuidores de violas, as trouxessem sob pena de excomunhão. O efeito foi imediato. Foi como se uma bomba estivesse estourado no seio daquela população inculta.

Surgiram violas de todos os cantos, e em poucos dias a casa de hospedagem do padre estava entulhada desse instrumento. O missionário mandou dependura-las nos galhos de uma árvore seca, arrumando uma parte dela embaixo da mesma árvore. Feito isso, ateou fogo à pilha de violas que arderam, e ao queimarem-se as cordas das violas vibravam, e o som era ouvido pelos assistentes.   

Também ficou famoso por suas profecias catastróficas de fim do mundo, que por muitos anos permaneceram no imaginário da população local, que acreditava em suas palavras, e propagavam seus relatos. Um fato peculiar de suas profecias lendárias é que ele sempre mencionava "o rabo baleia" ou "a baleia adormecida", animal que segundo ele, vivia adormecido sob as cidades da região. Segundo ele, ao acordar e se mover nas entranhas da terra, a "baleia" provocaria grande devastação.

Em Santana do Acaraú, um gaiato pregou uma peça de extremo mau gosto no sacerdote. Conta-se que tendo parado às margens do rio que corta aquela cidade, Frei Vidal aproveitou para beber água e banhar-se, tendo deixado o seu chapéu no galho de uma árvore. Um sujeito de maus bofes aproveitou sua distração para defecar dentro do mesmo. Ao sair dali, Frei Vidal retirou suas sandálias, bateu o pó que as impregnava e vaticinou que Santana estaria fadada a tornar-se “cama de baleia” e crescer sempre baixo, como o rabo de sua alimária. As cidades que nasceram às margens do Rio Jaguaribe também foram ameaçadas com igual vaticínio, pois segundo ele, Aracati seria a primeira da lista e as águas invasoras de um possível Tsunami iriam transformar a distante Icó em porto de navio.

Açude Araras construído sobre o leito do Rio Acaraú (imagem Tribuna do Ceará)

Santana do Acaraú e as cidades vizinhas seriam inundadas devido ao arrombamento de um açude pelo movimento do lendário mamífero adormecido nas entranhas da terra. Previa ainda que esse açude seria construído no Rio Acaraú, e que o açude teria nome de um pássaro. Lenda ou não o açude realmente foi construído, o Açude Araras, e nos últimos anos diversas cidades da Região Norte do Ceará, próximas a Sobral sofreram abalos sísmicos.

Por onde passava, a multidão ouvia-o enternecida à sua palavra de ouro e fé. Ao longo do vale de Crateús, certo dia, Frei Vidal bate a porta da casa grande da fazenda do Coronel José Ferreira de Melo, onde foi recebido alegremente. Era uma honra hospedar a figura singular e marcante do notável missionário. Anunciada a prédica, juntou-se uma multidão de gente, vinda de toda parte. Foi nesta oportunidade que Frei Vidal, fez veemente um apelo ao rico fazendeiro, no sentido de que mandasse construir uma capela. Homens daqueles tempos idos e vividos, não faltavam com a palavra, promessa feita, promessa cumprida.

Igreja Matriz de N. S. Santana em Independência (imagem IBGE) 

O sertanejo acedeu, dando início às obras, que foram concluídas em 1810. Aos poucos, foi-se chegando gente e principiou um modesto arruado, em forma de quatro, ao redor da capela de Nossa Senhora Santana. A florescente povoação elevou-se a distrito de Paz com o nome de Pelo Sinal, por resolução n.º 56 de 6 de setembro de 1836. No local hoje encontra-se a cidade de Independência.

Considerado o maior missionário que estas paragens já conheceu, com suas missões nunca esquecidas, e que se tornaram lendárias, sua fama era tamanha, que para sua aposentadoria, o Senado da Câmara de Fortaleza, arranjou-lhe a melhor casa da Villa, a então residência do mestre alfaiate Salvador José Quaresma.


Fontes:
Revista do Instituto do Ceará – “No Tempo de Frei Vidal...” de Eusébio de Sousa
http://acordacordel.blogspot.com.br
figura do cordel Revistas USP


quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Mestre Noza, o Imaginário


Travessa estreita próxima ao centro de Juazeiro. Do alto da janela a imagem do Padre Cicero observa o movimento da rua. Sob seus pés, uma escadinha quase vertical se balança atada a uma corrente de ferro, e por ela, o mestre galga todas as manhãs o pequeno sobrado. No andar de cima, móveis desgastados, alguns instrumentos de trabalho, toras e lascas de madeira brigam por espaço entre as paredes volumosas de onde pendem um grande relógio e o retrato de Lampião. Aproveitando a réstia de luz que entra pela janela, Inocêncio da Costa Níck, o Mestre Noza, trabalha.

Veias de sangue mouro e índio, cortando calos e músculos. Noza encalca a ponta dos dedos na banda cega do gume do canivete, e com sua lâmina abre dois vincos profundos no rosto de Padre Cícero. Em seguida, levanta os olhos e pega outra peça de imburana de espinho, arrancada da Serra de São Pedro, ali perto.

Padre Cícero por Mestre Noza (imagem: antiguinho.blogspot.com.br)

No Cariri chama-se de imaginário quem fabrica imagens. Noza é um deles, como um velho bruxo de mãos desmesuradas que trabalharam no cabo da enxada desde os dez anos. Em 1912 virou romeiro do Padim Ciço. De ofício experimentou a funilaria e a marcenaria, mas não deu certo. Até que, com 22 anos, um velho imaginário que tinha fama de louco lhe ensinou a esculpir imagens. Sua primeira escultura foi uma Santa Luzia. Trocou-a por um carneiro.

Um dia, contou Noza, um padre italiano chegou e viu um São Sebastião, disse – esse santo não existe, foram vocês que inventaram. Desde então, todos os santos são inventos do imaginário e Noza foi o primeiro a fazer uma estátua de Padre Cicero. Um dia, escolheu a mais bonita e foi mostrar para o Padim. O “santo” pegou a imagem e fez uma cara de quem está achando esquisito. Disse: “menino, eu já tenho essa corcunda assim?”

Juazeiro - 1911

Aprendeu Noza a fazer xilogravuras e abriu muitas capas de cordel, como a do homem do maxixe e a dos cantadores. “Eu faço Lampião, Maria Bonita e Antônio Conselheiro, nunca fui empregado de homem nenhum. Noza bate nos peitos e sorri meio sem jeito, e tenta explicar seus passeios noturnos “penso que na outra encarnação eu era um bicho da noite. Um bicho branco e muito bonito reluzindo no escuro, andando nos caminhos sem fim da mata e entrando pelas ruas esquecidas da cidade”.

Mestre Noza morreu em 1983, aos 86 anos de idade. 

fonte: O Ceará dos Anos 90 - Censo Cultural

         

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Antônio Villanova e Antônio Conselheiro

Nascido em Assaré, Antônio Villanova decidiu, ainda muito moço, emigrar para o interior da Bahia, no que foi acompanhado por sua esposa e por seu irmão Honório. Uma vez chegado ao destino, estabeleceu-se com pequeno e próspero negócio numa das cidades vizinhas do então florescente arraial de Canudos. O comércio começou a crescer, dando-lhe lucros satisfatórios e larga freguesia.

Arraial de Canudos, reduto de Antônio Conselheiro e seus fanáticos seguidores. Ficava em Belo Monte - BA 

Foi então que começaram a aparecer os fanáticos do Conselheiro, que lhe faziam descrições favoráveis da nova povoação, efetuavam compras vultosas e insistiam com ele para ir se estabelecer por lá. Seduzido pela esperança de fortuna e certo do bom acolhimento, mesmo pelas circunstâncias de ser também cearense o novo ídolo messiânico, Villanova acabou se instalando definitivamente no arraial agitado, onde se erguiam casas todos os dias do ano e onde o comércio era deveras promissor.

Arraial de Canudos

Com o passar do tempo, tornou-se Canudos uma praça de guerra e, como sua ascendência sobre os jagunços já se fizera sentir de modo insofismável sobre ele, bem a seu pesar recaiu o voto dos principais no sentido de assumir o comando de determinado setor das operações militares, além de uma espécie de juizado de paz sobre a cidade rebelde.

Passaram, no entanto, os tempos favoráveis das vitórias espetaculares dos insurretos sobre as forças do Estado, e sucederam-lhe os tempos difíceis de fatal decadência em que, pouco a pouco, foi se apagando a estrela do Conselheiro e da revolução chefiada por ele. Já a maioria das construções de Canudos haviam sido destruídas. O cerco levado a efeito pelas forças legais assumia caráter cada vez mais definitivo, enquanto a fome e a sede completavam os horrores sofridos pelos bravos guerrilheiros, bem dignos de outro ideal.

Quando, ao atravessar o arraial para a igreja nova, recebeu o Conselheiro a bala que o pôs de cama e mais tarde o matou, aos olhos dos demais, morreu ali, a última esperança. A vista do grande dilema – fugir ou esperar pelo próximo ataque – Villanova optou pela primeira alternativa.

Antes, porém, fiel às suas tradições de lealdade, foi conversar com o endeusado profeta. Fez-lhe ver o esgotamento geral; alegou os serviços prestados à revolução, só para não desmerecer da confiança nele depositada, sem o menor ardor messiânico dos outros. Invocou o triste estado da família, literalmente morrendo de fome, sendo ainda de notar que o irmão Honório, ferido e inválido, exigia cuidados especiais. Feita a exposição, pediu-lhe licença para ir embora.

os seguidores do Conselheiro foram feitos prisioneiros, depois do ataque a Canudos

Partiria à meia noite, quando todos estivessem adormecidos. Atravessariam a zona perigosa pelo leito do rio que banhava a cidade; e se a sorte lhe fosse favorável, voltariam ao Ceará, para nunca mais se arriscarem por terras estranhas...– Faça sua viagem, concedeu Antônio Conselheiro, cuja voz de tão alquebrada já parecia sair da eternidade. 

Depois de haver montado o ferido num jumento, partiram os fugitivos, pisando de mansinho e contendo a própria respiração, receosos de ser descobertos pelos soldados do governo, que já ocupavam a margem oposto do rio. Não era pequeno o risco de serem abatidos ali mesmo, como rezes no bebedouro. Viajaram vários, intermináveis dias, na expectativa de um encontro indesejado, caatinga adentro, pelo leito dos córregos ou pelas veredas do gado. Quando se viram fora da zona de perigo e alcançaram o solo pernambucano, tinham as roupas em farrapos e os pés em carne viva.

Assaré em épocas distintas com a Igreja matriz de N. S. das Dores (fotos IBGE-anos 50 e Vânia Dias- atual)

Chegando a Assaré, recolheu-se Antônio Villanova à propriedade onde viviam seus parentes e ali, esquecido do mundo, viveu até 1913. A esse tempo foi lhe bater à porta um emissário de Floro Bartolomeu, levando uma carta do Padre Cícero que pedia sua presença, com urgência em Juazeiro. Achava-se o Juazeiro em véspera de proclamar a inconfidência que apeou do poder o governador Franco Rabelo e dali se alastrou por todo o Estado.

Floro Bartolomeu, no centro da foto 

Queria-o o político baiano para liderança dos sertanejos inexperientes que iam partir para a luta, como também para dirigir o serviço de defesa em que Canudos tanto se havia distinguido. Antônio Villanova foi irredutível. Nunca mais empunharia arma contra o governo, fosse onde fosse. O que fez foi dar, ante os insistentes pedidos, algumas noções práticas do sistema de valados que logo circundaram a cidade rebelada e que admiravelmente a guarneceram naquele instante decisivo da história do Ceará.

Cumprida a missão Villanova regressou à terra natal, incógnito como tinha saído, para nunca mais dar o ar da graça fora de Assaré. Era, todavia, um homem leal, bravo, circunspecto e diligente, à altura, portanto, de uma grande responsabilidade.

Fonte: Villanova e Antônio Conselheiro, do Padre Azarias Sobreira 
Publicado na Revista do Instituto do Ceará – 1948 
fotos da Internet