Viviam no interior do Ceará duas famílias
irreconciliáveis, representadas de um lado pelos Maciel e do outro, a família
Araújo, os primeiros residentes em Santo Antônio do Quixeramobim e os segundos
na vizinha povoação de Boa Viagem.
Luciano Domingues de Araújo era jovem casadoiro e
desatento às animosidades familiares. Ajustou casamento com uma certa Joana,
moça jovem e bonita, filha de Inácio Lopes Barreira, pertencente à família dos
Queiroz e ligada aos Maciel por laços de parentesco.
Essa união desagradou a Miguel Carlos Maciel, que
depois de tentar de várias maneiras e não conseguir impedir o matrimônio,
resolveu solucionar o caso a seu modo. Assim, contratou Estácio José da Gama
para dar um fim ao pretenso noivo. Deu-lhe como armas para execução um
bacamarte e uma faca de ponta, além da quantia paga ou prometida de dez mil
réis.
Na véspera do casamento, cuja data marcada seria 12 de
fevereiro de 1834, Estácio da Gama acoitou-se na Fazenda Cachoeira, local por
onde obrigatoriamente, deveria passar o cortejo. Teve o cuidado de colocar no
leito da estrada uns troncos de árvores, o que obrigaria a reduzir a marcha dos
cavalarianos e a parada individual.
No dia aprazado, por volta do meio dia e a meia légua
de distância da casa da noiva, na Fazenda Tapuiará, quando Luciano dava a volta
na barreira colocada no caminho, recebeu tremenda carga de chumbo, atingindo-o
do peito aos quadris. Ferido gravemente e socorrido pelos acompanhantes, foi
conduzido a residência do pretenso sogro, onde ainda moribundo, realizou-se o
casamento, não mais com fins maritais, mas como forma de habilitar a mulher ao
patrimônio hereditário do marido.
Quixeramobim - Paço Municipal
Construído pelo português José Jacinto de Sousa Pimentel em 1817, o casarão em que funciona a sede do executivo municipal de Quixeramobim é um dos mais expressivos remanescentes da nobreza sertaneja do século XIX. Composto de três pavimentos, o faustoso casario foi adquirido pela a Administração Municipal em 1984.
Morto Luciano, concluído o termo de corpo de delito e
anexado às peças do inquérito, providenciou-se a captura do indiciado, cuja
prisão se deu em 8 de março de 1834. Em seguida teve andamento o interrogatório
do qual foi presidente o Juiz de Paz Manuel Martins de Almeida Buriti.
Consta do interrogatório como sendo Estácio José da
Gama natural de Quixeramobim, com profissão itinerante de agente negociador,
que conhecia a vítima, que não fora o autor do crime, que no dia do
acontecimento encontrava-se em casa de Antônio Maciel, de quem era morador, que
evidentemente andava armado de bacamarte, que andava a cavalo, que vestia
calças brancas, camisa de riscado azul e usava chapéu de couro. Quanto à
autoria do crime que lhe era imputado por testemunhas, apenas sabia por essa
fonte e que a despeito das escusas e à vista da prova testemunhal, o juiz concluiu
o seu relatório enquadrando-o como incurso nos artigos 192 e 16 do Código
Penal.
No dia 11 de março, no entanto, documento firmado pelo
pai da vítima, Antônio Domingues Alves, confirma sob as penas da lei, que o
denunciado, a mando de Miguel Carlos Maciel, fora realmente o assassino do seu
filho, Estácio confessou a autoria do crime diante de várias testemunhas. Admitida como prova a declaração,
o juiz mandou fazer uma acareação, ocasião em que o réu Estácio José da Gama,
confessou que matara a Luciano Domingues de Araújo a mando de Miguel Carlos
Maciel.
O réu foi condenado a pena de morte, devendo cumprir o
ritual de expiação moral conforme a seguinte programação:
1 – subida imediata do réu para o oratório;
2 – descida do oratório e caminhada em préstito
lúgubre pelas ruas da vila de Campo Maior, Comarca de Santo Antônio de
Quixeramobim, sob o pregão do porteiro Manuel Gomes da Silva, a quem cabia
apregoar a sentença em altas vozes;
3 – marchavam em seguida, como figuras ilustrativas da
justiça, o Juiz Interino e capitão Antônio Duarte de Queiroz e o escrivão
Canuto José da Silva Lobo;
4 – por último e a caminhar de olhos fitos no chão,
desolado e a demonstrar ares de resignação, ladeado pelo confessor, o padre
Bento Antônio Fernandes, complementava-se o cortejo, tendo como figura central
o réu, Estácio José da Gama, a quem zelosamente montavam guarda os milicianos
da Vila.
5 – do alto da igrejinha, onde do lado de dentro o
padroeiro Santo Antônio dormia seu sono de imagem, o sino dobrava, mandando aos
ventos a sua voz solitária. Estava concluída a peregrinação.
Igreja matriz de Santo Antônio de Pádua
Tem suas origens na primitiva capelinha de taipa construída e entregue aos fiéis no ano de 1732 por Antônio Dias Ferreira. A fachada externa do templo, sofreu algumas alterações ao longo de diversas reformas, a última das quais realizada entre 1886 e 1916
Havia próxima a igreja uma sepultura que indicaram ao
réu como sendo sua última morada. Estavam no local uma pá e uma enxada,
instrumentos com os quais seria fechada sua cova. Numa das testadas e distantes
um do outro cerca de dez metros, dois mourões limitavam o centro no qual uma
cadeira esperava seu ocupante. Sentado e de mãos atadas aos mourões, Estácio da
Gama desabafou em desespero: “eu matei Luciano porque a justiça de Quixeramobim
me deixou impune pela morte que fiz na Rua da Camboa e por ter tentado
assassinar o Caeté (Luis Raimundo Caeté Monteiro). Só lamento morrer por ter
morto apenas um, quando entre os dez que me vão atirar existe um que fez oito
mortes. Meus amigos – disse voltando-se para a tropa – só lhes peço que não me
deixem sofrer”.
Quando o vigário sinalizou o credo em suas últimas
palavras, uma descarga de cinco tiros foi despejada no peito ofegante do
condenado. Ele ainda resistiu, havendo então uma segunda descarga. A justiça
tinha cumprido seu papel.
No caso em questão, restou para análise os seguintes
pontos:
1 – o fator açodamento. Entre a data do crime e o dia
da execução decorreram exatamente 31 dias, tempo suficiente para que as emoções
mais fortes ainda se mantivessem vivas.
2 – o juiz presidente, a quem coube dirigir o Conselho
(Capitão Antônio Duarte de Queiroz), era segundo consta, cunhado e primo em
segundo grau de D. Joana, a viúva do falecido Luciano de Araújo, mesmo com os
impedimentos contidos no artigo 1° do Código Criminal.
3 – o réu, a despeito de ter sido assistido por
advogado dativo e das prerrogativas de recursos asseguradas pelo Código
Criminal, não recorreu da sentença, o que teria levado a novo julgamento, desta
vez no foro da Capital, longe dos envolvimentos regionais, onde provavelmente a
pena seria revertida para prisão.
4 – de acordo com o decreto Imperial de 1826, nenhuma
sentença de morte poderia ser executada sem antes haver passado pela apreciação
do Imperador, que em casos especiais, poderia até conceder indulto, o que no
entanto não ocorreu, ficando por conta da ignorância, justificativa de que se
serviram os magistrados interioranos, para eximirem-se da responsabilidade.
5 – Quem presidiu o julgamento foi o juiz de Direito,
que nenhuma competência tinha para esse mister, cabendo o feito ao Juiz de Fora
ou Letrado, na forma prevista no respectivo Código Criminal.
6 – na fase de instrução do processo o réu negou a
autoria e assim se manteve por alguns dias na tentativa de conduzir o
julgamento à autoria presumida, o que de certa forma o beneficiaria. Utilizados métodos ilegais (relho cru), por dois milicianos da guarda local, ele
caiu em contradição e confessou "espontaneamente" o que antes fora negado.
Informado das irregularidades resolveu o Chefe de Governo do Estado, interpelar o juiz responsável, porém este ao justificar em longo
ofício, simplesmente descartou qualquer responsabilidade, informando textualmente: ignoro inteiramente o
que consta de tal decreto e por isso devo ter incorrido em algum erro
involuntário. O fato aconteceu no governo do presidente Inácio Correia de
Vasconcelos.
Extraído do livro
Pena de Morte, de R. Batista Aragão
fotos IBGE
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