Vinte anos após a
liberdade e a independência do Brasil de Portugal, na manhã do dia 22 de setembro de 1842, uma enorme multidão vinha do centro da cidade
em direção ao planalto do Paiol, campo de onde se avistava o mar para os que
vinham do interior, um deserto de areias movediças que o vento revolvia.
À
frente da lúgubre procissão, montado num cavalo, vinha alguém abrindo caminho;
ao seu lado montavam dois outros cavaleiros à guisa de escudeiros, respeitosos.
Aquela entidade imponente sobre seu corcel, era um juiz, ladeado de servidores
subalternos a ele. A seguir, vinham soldados de sobrecenho carregado, carabinas aos
ombros, as baionetas luzindo ao sol; eles escoltavam uma figura em trajes
femininos que chorava e tremia, arrastando os passos. Naquele cortejo cívico,
uns eram algozes; outros, a claque dos patíbulos e a vítima uma mulher frágil,
cativa desde o berço e deserdada de todos os favores da lei.
A condenada era Bonifácia, a escrava de Joaquim Carpina. A escrava
Bonifácia era acusada de haver matado um jovem rapaz; mas o crime não estava no
homicídio simplesmente. Concorria nele uma circunstância atroz. O assassinado
não era de um filho seu, que por instinto da espécie devesse preservar a qualquer
custo; não era o filho de um benfeitor, a quem sucedesse nos direitos pelo
benefício outorgado; era mais que isso – era um senhor moço, filho de Joaquim
Marques Vairão, conhecido pelo vulgo de Joaquim
Carpina.
Essa circunstância no regime econômico da escravidão produzia uma agravante
extrema do delito, porque no código negro, o atentado contra o senhor que
surrava estava equiparado ao crime contra o pai. Tudo se compreendia no parricídio,
ou se considerava da mesma categoria que o sacrilégio que andava nas primeiras
páginas dos códigos medievais.
O suposto crime foi cometido em Maranguape, começando em Fortaleza por um exame procedido no cadáver do filho de Joaquim Carpina, remetido do sítio Mongubeira. O cirurgião militar Machado, perito único, declarou ter encontrado feridas contusas no rosto e mais duas na região do pescoço, que mostravam ter sido feitas com as mãos, porque se achavam os sinais das unhas cravadas no rosto, revelando pela compressão terem impedido a respiração, do que resultara a morte.
O suposto crime foi cometido em Maranguape, começando em Fortaleza por um exame procedido no cadáver do filho de Joaquim Carpina, remetido do sítio Mongubeira. O cirurgião militar Machado, perito único, declarou ter encontrado feridas contusas no rosto e mais duas na região do pescoço, que mostravam ter sido feitas com as mãos, porque se achavam os sinais das unhas cravadas no rosto, revelando pela compressão terem impedido a respiração, do que resultara a morte.
As testemunhas do delito, eram pessoas do campo, simples, de cuja
moralidade e interesse no fato, não havia notícias; e o juiz de paz, não
passava de um homem atrasado em demasia, para proceder às altas indagações da
justiça. Enfim, o processo constou de umas quatro folhas de papel mal escritas,
no fim dos quais se acrescentou com mão firme a sentença de Bonifácia: ao patíbulo.
Depoimento da 1ª Testemunha
Estando em sua casa e indo buscar uma carga de água em
Mongubeira, perguntou à Bonifácia como estava o menino Antônio, filho de Vairão,
que soubera havia sido mordido por uma cobra. Ela respondeu que estava muito
doente e já estava todo roxeado pelo pescoço; e ela testemunha, dirigindo para
a casa a ver o dito menino, falou com ele, que estava deitado em uma rede, num
dos quartos da casa. Perguntou-lhe como estava, e ele respondeu que muito
doente de dois coices que o cavalo de seu pai lhe tinha dado. Perguntou-lhe se
tinha ânsia e alguma coisa no coração; respondeu-lhe que não. Ela testemunha,
não viu que houvesse manchas no menino, porém que a casa estava escura. Recomendou
a Bonifácia alguma coisa no sentido de ela poder vir com mais alguma pessoa
fazer quarto ao menino.
Segunda Testemunha
Chegando em sua casa, vindo de Arronches, recebeu um recado
de Bonifácia, pedindo-lhe que fosse à Mongubeira para ir a Fortaleza dar parte
a Vairão que o filho estava mordido de uma cobra, e ali indo ter, esta lhe
disse que não precisava mais, porque já tinha mandado um recado àquele. Bonifácia
disse-lhe que o menino tinha sido mordido pela manhã, e após isto lhe dissera que
tinha sido à tarde, informando que não estava tão doente disso como dos coices.
Acrescenta que, falando ele no terreiro, o menino lhe conheceu a fala e de
dentro lhe perguntou se era ele que ali estava. A testemunha como já tivesse
ouvido a Bonifácia, não perguntou a ele se estava mordido. Bonifácia o chamou,
quando se retirava; havia presente uma mulher de nome Ana.
Terceira Testemunha
Em 31 de janeiro, estando na casa do finado, presente
Bonifácia e o menino, dizendo este que havia de contar artes que ela fazia,
como fosse ter furtado uma cabra. Bonifácia levantou-se muito irada e pegou o
menino pelas goelas, deu-lhe um grande arrocho, o sacudiu lá, e passou a
descompô-lo. Após isso, Ana se retirou.
Indo outra vez ali buscar água, encontrou a escrava que
trazia o menino para a casa, vindo dum cercado de mandioca e bananeiras,
perguntando de que estava doente aquele menino, que ainda à noite estava bom.
Bonifácia respondeu que tinha sido uma cobra que lhe tinha mordido e um coice
de um cavalo, mas, segundo o que mostrava, nunca foi cobra nem coice de cavalo,
mas uma grande surra que Bonifácia dera no menino, e pedindo este que a
testemunha não saísse dali, porque estava com grande medo de Bonifácia, ela,
testemunha, disse que sim, não punha dúvida, mas antes ia deixar sua água em
casa. Voltou, esteve toda a noite com o menino que não estava mortal. Não gemeu,
dormiu bem toda a noite. Amanhecendo o dia, Bonifácia pediu a ela, testemunha,
fosse ver um tição de fogo, e voltando ela à casa com pouca demora, foi
perguntando como estava o menino, e lhe respondeu aquela que ele estava morto. No
mesmo instante, entrando pela casa adentro, achou o menino morto daquele
momento, pois que as carnes ainda lhe tremiam e o coração batia. Assegurava que
quem matou o menino foi Bonifácia.
Quarta Testemunha
Vindo ver água na terça de manhã, 2 de fevereiro, ouviu
gritos de Bonifácia que acudissem, que tinha morrido o menino e, indo ali, ela
informou que ele morrera de uma mordedura
de cobra. Entrando pela casa, achou-o morto, como daquele momento. Mandou
tirá-lo da rede para lavá-lo, pois que estava muito sujo, e ajudando a lavá-lo,
viu ter o rosto arranhado, o pescoço roxo com dois arranhões, não tendo indícios
de ter morrido de coices nem de mordedura de cobra. Na ocasião em que se lavou
o cadáver, reparou e viu que a morte tinha sido como que se apertando as goelas
até faltar a respiração.
Bonifácia não assistiu às inquirições por ter fugido, diz
uma certidão. O menino ainda não tinha 11 anos. No interrogatório único que lhe
foi feito, o do júri, disse que o menino morrera de coices de um cavalo,
metendo num cercado os animais do pai, que esteve três dias doente e que ela
avisara aos pais. Bonifácia foi condenada à morte por enforcamento tendo por
base apenas o testemunho de quatro pessoas, sem outras provas ou contestações. A sentença foi cumprida no dia 22 de setembro
de 1842, no atual Passeio Público, em Fortaleza.
Extraído do livro de João Brígido
Ceará (homens e fatos)
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