sábado, 13 de julho de 2024

o Riacho Pajeú e a Lagoa do Garrote

 A capital do Ceará nasceu em fins do século XVII, início do século XVIII à sombra dos muros do forte português fundado pelos holandeses, que defendia o grande maceió ou pocinho, formado na embocadura do riacho Pajeú. Os holandeses chamavam o riacho de Marajatiba e a fortaleza de Schoonemborch. Em memória desse pocinho, se chamava Beco do Maceió o prolongamento da antiga Rua do Chafariz, atual José Avelino.

Avenida Alberto Nepomuceno, por onde corria o riacho Pajeú

Entre as duas colinas em que se erguia a fortificação, corria o Pajeú, que vinha das matas da aldeota, divagando ao sabor do relevo. A cidade surgiu numa ala de pequenas casas perpendiculares à parte de trás do forte, a Rua do Quartel. Depois formou uma praça, a da Sé, localizada numa volta do riacho e se estendeu pelo seu tortuoso vale, acima e abaixo, formando a Rua Direita, que foi rua de Baixo, Conde D’Eu, e Sena Madureira. Mais tarde teve um trecho alargado, chamado de Alberto Nepomuceno.

Por esse tempo, dois córregos cortavam as colinas, cujo ponto culminante ficava na antiga Rua Formosa atual Barão do Rio Branco, onde se erguia o sobrado do Conselheiro Rodrigues Junior e hoje existe o Edifício Diogo. O primeiro desses córregos, vindo da parte norte da antiga Lagoinha, na avenida Tristão Gonçalves, fluía pelas ruas Senador Pompeu, Barão do Rio Branco,  Major Facundo e Floriano Peixoto, entre a travessa das Hortas, depois Senador Alencar e a Rua das Flores, atual Castro e Silva.

Praça da Lagoinha, já sem a lagoa que já havia sido aterrada

Justamente na sua passagem pela Rua Major Facundo, o negociante Pacheco construiu um grande sobrado, por volta de 1845 a 1847. Depois, empobrecido, suicidou-se em Paris. Depois, pertenceu ao Barão de Aquiraz. Esse imóvel foi vendido ao coronel José Gentil que o demoliu. Em frente a esse sobrado, ficavam as cocheiras e o quintal da residência do Dr. Rufino de Alencar, que dava para a Rua Floriano Peixoto. Descendo por esse quintal via-se a marca da continuação do leito. Esse ribeiro ia desaguar no Pajeú, na parte meridional da atual Praça da Sé.

Documentava o curso do segundo córrego o escoamento das águas pluviais no trecho da rua Barão do Rio Branco, além do sobrado do conselheiro Rodrigues Junior. Vinha do lado meridional da lagoinha, cruzava as ruas 24 de Maio, General Sampaio e Senador Pompeu, descia pela Pedro I e, na Major Facundo, na quadra que antecede a praça do Carmo, entrava por um bueiro no quintal da antiga residência do dr. Gil Amora, na rua Floriano Peixoto, e das residências da rua da Assunção, ajudado por uma nascente ali existente, ia formar a lagoa do Garrote, de onde sangrava para o Pajeú.

Lagoa do Garrote, antes da criação do parque 

Assim, esse curso d’água que foi vital para o surgimento da cidade, devia seu maior volume de águas ao tributo de duas lagoas, a Lagoinha e a do Garrote. Formavam-no sob os pés de cajueiros e jatobás do Outeiro e da Aldeota, vários ribeiros e as águas que corriam dos alagadiços e baixadas paralelos ao antigo calçamento de Messejana, atual avenida Visconde do Rio Branco.

Perto da lagoa do Garrote, e separado pelo calçamento de Messejana, o Pajeú foi represado num açude de alvenaria de tijolos com comportas, construído na seca de 1845, pelo presidente José Martiniano de Alencar, e restaurado mais tarde pelo Dr José Júlio de Albuquerque Barros, Barão de Sobral.

Dessa obra, que existiu até 1920, não existe mais nenhum vestígio. Por sua vez a Lagoa do Garrote também foi cercada para se tornar o lago central do jardim público que existia no local, no governo do coronel Luís Antônio Ferraz, com base em projeto do engenheiro Romualdo de Barros.

Parque da Liberdade/Cidade da Criança onde funcionou um jardim de infância 
 
Há duas versões para o nome Garrote, dado à lagoa, e por extensão, durante certo tempo, ao bairro compreendido entre o Pajeú e a Rua da Assunção, a praça do Coração de Jesus, e a dos Voluntários. Uma das versões é a seguinte:

Perto da praça, na Rua do Cajueiro, atual rua Coronel Bezerril, ficavam os açougues da cidade. A área era semideserta e cheia de mato, o gado era abatido debaixo das árvores. Havia pequenos currais, onde o gado ficava confinado. Certa vez um garrote destinado ao abate fugiu de um desses cercados e se perdeu nos matagais das proximidades. Durante um tempo foi perseguido sem que ninguém conseguisse capturá-lo, apesar das batidas e da espera a beira da lagoa. Um dia, o laçaram e o mataram. Desse episódio veio o nome da lagoa. A outra versão é de que ali era o local de descanso dos comboieiros que, que conduziam gado e outros produtos pelas estradas do Ceará.


Extraído do livro: À Margem da História do Ceará/Gustavo Barroso/Imprensa Universitária do Ceará/Fortaleza:1962/publicação FortalezaemFotosFotos do Arquivo Nirez 


quinta-feira, 4 de julho de 2024

O Bispo de Sobral: pela moral e os bons costumes

centro de Sobral (imagem internet)


A edição do jornal "O Correio", do dia 9 de outubro de 1919, inicia uma severa campanha pela moralidade em Sobral, protestando contra a prostituição na cidade, pedindo “saneamento radical contra o meretrício”, o que resulta em grande polêmica com o juiz Clovodeu Arruda, de ponto de vista bem mais flexível no assunto. O juiz via as prostitutas, a maioria oriundas de famílias muito pobres, como válvulas de escape da sociedade, pela proteção que ofereciam às moças ricas, menos assediadas pelos noivos e namorados, uma vez que eram bem atendidos na zona.

O jornal ainda denuncia os abusos cometidos por moças indecentes, danças provocantes como tango e o foxtrote, filmes que estimulam o lenocínio e o adultério, revistas e romances obscenos. Chama a atenção para a inércia das autoridades em punir os responsáveis por tais divulgações, e ignorar os endereços das decaídas, presentes em quase todas as travessas da cidade.

O jornal culpa a tecnologia a serviço do pecado, e responsabiliza “esses cobiçados automóveis, as tantas casas de pasto, lanternas elétricas que permitem a alguns galgar muros e telhados pelas misérias que nos envergonham e aviltam”. Ressaltava que senhoras e moças de mangas curtas ou vestidos decotados não deveriam ir às igrejas, receber sacramentos ou amadrinhar inocentes, bem como o uso de saias evasês e cabelos à la home.  

A campanha contava com o apoio do próprio bispo Dom José, que em artigo publicado no dia 22 de janeiro, dirige suas críticas aos hábitos das fiéis: “na igreja, a moça sobralense é só e toda de Deus; se por acaso lhe acode ao pensamento  a imagem do seu preferido, é só e para entrega-lo a mais e mais aos bons cuidados da Previdência Divina.”

Do outro lado, Deolindo Barreto, que durante muito tempo pusera seu jornal "A Lucta", a serviço do bispo, já se desentendera com ele por causa da campanha eleitoral. Por isso, dá vazão a seu espírito galhofeiro na matéria “JB pede noiva”

“tendo os virtuosos diretores da Igreja nesta cidade proibido as senhoritas de irem aos bailes, teatro, futebol, avenida e que os homens nos templos olhem para as mesmas...”

Apesar do olhar atento da igreja, o povo se divertia para valer, fosse no Grêmio ou  no Clube dos Democratas, nos passeios de bonde da estrada de Ferro até a Avenida da Cruz das Almas, e até em canoas, quando o Acaraú invadia a cidade, apesar do medo do inferno, e da vigilância do bispo, que ameaçava os pecadores. Inclusive porque, nem todos os padres pareciam concordar com tais crenças, e sempre apareciam alguns arranjos discretos, onde nasciam "sobrinhos", que mesmo não sendo oficialmente reconhecidos, eram assistidos financeiramente pela vida afora.

E havia muitos casos, uns escondidos, outros de domínio público que caíam na boca do povo e desautorizava a rigidez moral do bispo. Havia o caso do padre José Palhano, que tinha fama de conquistador e era acusado de receber a visita de amigas, altas horas da noite. A reputação do padre não chegou a ser afetada, nem mesmo depois da manchete do jornal "Diário do Povo", de Jáder de Carvalho, apontando o padre como protagonista de animados encontros amorosos em apartamento do Excelsior Hotel em Fortaleza. Muito menos pela agressão praticada contra um rapaz da sociedade, que queria namorar uma moça por quem o padre nutria uma paixão.

Ficou na lembrança de muitos a história do rapto de uma moça pelo então vigário de Coreaú. Os irmãos dela perseguiram o casal e testemunhas descreveram a figura do padre em fuga, "a batina negra esvoaçando ao vento, a cavalo, levando a noiva na garupa"; de repente estaca, no meio da estrada, saca o revolver e corre para fugir dos tiros desferidos pelos futuros cunhados.

Houve ainda o caso da diretora da Pia União das Filhas de Maria, moça de virtudes tão reconhecidas que, por autorização do bispo, mantinha em sua casa um gabinete espiritual para dar consultas gratuitas sobre assuntos religiosos. Era tamanho o respeito que desfrutava, que uma vez recebeu o encargo de preparar um jovem aspirante a seminarista, rapaz bronco de espírito, mas de bela compleição física. Em meio às aulas de religião, a carne falou mais alto. E a beata ao invés de colocar o jovem cristão nos assuntos divinos, encaminhou-o para sua cama. Casaram-se às pressas.

Alheio aos fatos, o bispo fechado em seus conceitos de céu/inferno, continuava firme contra a luxúria de seus fiéis. Homens não podiam entrar no Colégio Sant’Ana, a não ser padres ou professores idosos. As integrantes da irmandade “Filhas de Maria” sofriam ao serem obrigadas a vestirem roupas que lhes cobriam o corpo todo, naquelas altas temperaturas, sob o sol ardente de Sobral. O vestido era de mangas compridas e as meias iam até os joelhos; tinham ainda de usar combinação que cobrisse até três quartos do braço. Além disso não podiam frequentar nem o sereno das festas.


Santa Casa de Sobral (imagem blog Sobral na História)

Colégio Sant'Ana (pinterest)


As senhoritas da sociedade encontraram uma saída para driblar as exigentes normas da igreja: inventaram umas mangas removíveis que cobriam os braços, apenas quando estavam na igreja. Ao saírem se descobriam, fugindo do calor insuportável.

Conta-se que Dom José resistiu bravamente à instalação do Rotary e do Lions Clube. Quando finalmente concordou que o Lions fosse fundado na cidade, estava já bem idoso. Recebeu uma comitiva formada por dirigentes da entidade e foi convidado a assistir à primeira reunião. A certa altura, para lisonjeá-lo, um dos visitantes disse que o bispo mandava na cidade. ao que Dom José respondeu 

– mando nada, quem manda é a Chica Agostinha. Fecho o cabaré dela na quarta e ela reabre no sábado.

 


Por mais de 50 anos Dom José – José Tupinambá da Frota  (1882 – 1959) – moldou Sobral à sua imagem e semelhança. Num extremo da cidade, edificou em dez anos de luta, a Santa Casa de Misericórdia, o melhor hospital da região; no outro fundou o Seminário, cujas acomodações abrigam a Universidade do Vale do Acaraú; montou o Colégio Sobralense para rapazes. Para viabilizar a Colégio Sant’Ana, cedeu o palácio episcopal, destinado a educação feminina, antiga residência do Senador Paula Pessoa. Instalou o Abrigo Coração de Jesus para acolher a velhice desamparada. Montou o Banco Popular de Sobral, depois BANCESA. Fundou o Correio da Semana e o Museu Diocesano.

Não contente com tudo isso, escreveu a história de Sobral. Nada passou despercebido ao gênio realizador de Dom José. Viveu e morreu se defendendo dos que lhe apontavam a ostensiva militância político-partidária.

 

Extraído do livro: Clero, Nobreza e Povo de Sobral, de Lustosa da Costa. Rio – São Paulo – Fortaleza: ABC Editora, 2004.     

terça-feira, 2 de julho de 2024

O Forte Holandês

 

O comandante holandês Mathias Beck, tendo desembarcado na enseada do Mucuripe, decidiu estabelecer-se à margem esquerda de um riacho, que alguns nomeavam de Marajaitiba, outros chamavam de Pajeú, ali construindo um forte que chamou de Schoonenborch, em homenagem ao então governador de Pernambuco. O desenho do forte coube ao engenheiro Ricardo Caar, que tendo examinado as condições do forte levantado na Barra do Ceará, optou pela construção de um novo, em novo local, levando em conta que, em caso de cerco, o riacho próximo asseguraria o suprimento de água, o que não acontecia no forte da Barra do Ceará, que, ficando a alguma distância do rio, seria facilmente interceptável em caso de ataque.


 Forte de São Sebastião. Fonte: Montanus, 1671

A segunda ocupação holandesa no Ceará durou cinco anos, retirando-se em os invasores em 1° de junho de 1654, dando cumprimento ao tratado de paz celebrado entre Portugal e Holanda. Antes, o comandante Matias Beck fez a entrega do Schoonenborch ao capitão português Álvaro de Azevedo Barreto, no dia 20 de maio daquele ano.


planta do forte Schoonenborch depois Nossa Senhora da Assunção (imagem Internet)

O forte foi aproveitado pelos portugueses apenas com a modificação do nome e algumas obras de reparo, passando a ter o patrocínio de Nossa Senhora da Assunção. A nomeação do comandante Álvaro de Azevedo Barreto, fora confirmada por Ordem Régia de 23 de novembro de 1654, mas, em 13 de setembro do ano seguinte, o rei Dom João IV expediu patente a Domingos de Sá Barbosa para capitão da Fortaleza do Ceará, de onde se presume que tenha sido específica a nomeação de seu antecessor, restringindo-se a executar o tratado de paz com a Holanda, ao recebimento do forte Schoonenborch.

Depois o forte passou pelo comando de diversos capitães. Por essa época, os direitos sobre a Capitania do Ceará foram reclamados por João de Melo Gusmão, que se prontificou a povoá-la, e o rei Dom Afonso IV o nomeou para comandar o forte em 1660. Pode assumir o posto somente depois de três anos, e faleceu logo depois. Tendo sido o primeiro a trazer sua família, composta de mulher e três filhas para o Ceará, provavelmente com o propósito de aqui permanecer.

Para suceder ao capitão falecido, foi nomeado João Tavares de Almeida, que reconstruiu o forte, que se encontrava quase que em ruínas, atribuída à inexistência de comandante durante alguns anos; exerceu o cargo duas vezes , antes e depois de Jorge Correia da Silva, a quem coube combater , em princípios de 1672, os índios Paiacus.

Com a vacância devido ao falecimento de João Tavares de Almeida, o forte sofreu grandes avarias, sendo reedificado por Bento Correia de Figueiredo, comandante nomeado pelo governador e capitão-general de Pernambuco, mas preterido na escolha real, pelo homônimo Bento de Macedo de Faria, sobre quem recairiam acusações de conivência com contrabandistas holandeses, e por Sebastião de Sá, , este aliás, anteriormente, porém outra vez investido no comando, coube reconstruir o forte do Pajeú, inclusive a ermida.

Em seguida exerceu o comando Tomás Cabral de Olival, de cuja passagem pelo Ceará, pouco ou nada existe a assinalar. Merecendo, no entanto, maior relevância que Pedro Lelou, nomeado após ele, mas impedido de tomar posse, por estar sendo processado. Interinamente, Fernão Carrilho se saiu muito bem, vencendo os Paiacus e aldeando Anacés, e Jaguaribaras nas proximidades do forte.

Depois de empossado, Pedro Lelou não tardou que os moradores representassem contra ele, por excessos cometidos, e foi repreendido pelo próprio rei por ter criado postos no distrito do Ceará contra as ordens existentes. O maior serviço prestado por esse governante, foi ter escrito ao monarca em 1696 sugerindo a criação da primeira vila em território cearense.

Comandaram ainda o forte de Nossa Senhora da Assunção, em fins do século XVII, Fernão Carrilho e Francisco Gil Ribeiro. Os holandeses ao preferirem localizar o forte à margem do Marajaig, sobre o barranco ali existente, anteciparam-se aos portugueses no cumprimento de uma recomendação que o governador do Maranhão, Francisco Coelho fizera em carta de 6 de fevereiro de 1627, ao rei Felipe IV.


Extraído do livro “A Capital do Ceará”, de Geraldo da Silva Nobre.      

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Paula Ney, poeta e boêmio

 



Paula Ney foi aluno do Liceu e do Seminário da Prainha. Mas nunca gostou de estudar, era um aluno rebelde. Enquanto estudava no Seminário, costumava fazer discursos contra os antigos métodos de violência empregado para o aprendizado das matérias. Como resultado, foi expulso por mau comportamento. No Liceu, a história se repetiu, sendo reprovado por conta de grande desentendimento com um professor de inglês.

Por causa de sua inadaptação, foi mandado pelo pai para o Rio de Janeiro, para estudar Direito; a mãe preferia que estudasse Medicina; no final, Paula Ney não seguiria nenhuma dessas profissões. Iniciou-se no jornalismo na “Gazeta de Notícias”, participou de comícios pela abolição da escravatura ao lado de José do Patrocínio, além de escrever em favor da liberdade. Mas, para atender as expectativas da mãe, matriculou-se na Escola de Medicina, que pouco frequentava. Comparecia apenas para realizar exames orais, conseguindo sucesso pelas amizades com os professores e gozações nas respostas:

Diga ao menos quantos ossos tem o crânio de um homem ... – não me recordo professor... mas tenho-os todos aqui na cabeça. Fica satisfeito o primeiro examinador. Vai para avaliação do segundo:

vou fazer a primeira pergunta. Se o senhor responder nada mais lhe perguntarei, dar-me-ei por satisfeito. “Diga-me quantos fios de cabelo tem o senhor?”

- duzentos e sessenta e cinco mil oitocentos e novecentos e quatro...

- mas como o senhor chegou a essa conclusão?

- caro professor, não se esqueça que o senhor garantiu que só faria uma pergunta. Trato é trato.

E é aprovado em Anatomia. No exame de Cirurgia teve de se haver com o Visconde de Saboia. Nada sabe do ponto sorteado. Resolve então fazer literatura.

a mentalidade humana vive num oceano de hipóteses e de dúvidas... os sábios vão ao fundo, na ânsia das pesquisas, com o peso da inteligência...

- e a ignorância? Pergunta-lhe o Visconde.

- essa boia.

Mas essa vida fácil na Faculdade de Medicina não podia continuar eternamente. E foi ao prestar exame de Obstetrícia, com o professor Feijó Junior, que o fez dar por encerrada sua futura profissão de médico. Ao ser sabatinado, não conseguiu articular uma resposta, o que fez com que o professor dissesse: 

“senhor Paula Ney... então não sabe isso? É incrível, uma coisa tão fácil...olhe que o que estou lhe perguntando é coisa que sei desde que nasci..."

Ney então compreende que está perdido. E quebra o silêncio fazendo a sala explodir numa gargalhada: - se o senhor sabe isso desde que que nasceu, então a senhora sua mãe devia ter uma biblioteca dentro do ventre

Estava terminada a sabatina, e encerrado o curso para o aluno. Paula Ney nunca mais voltaria à Escola.

Francisco de Paula Ney, nascido em Aracati, no dia 2 de fevereiro de 1858, representa uma geração de poetas boêmios, despreocupada com a vida e com o futuro. Somente o prazer dos amigos, as rodas literárias e as serenatas faziam sentido nessa existência alegre e poética. Fazia versos nas mesas dos cafés, na primeira folha de papel que lhe viesse as mãos. Gostava de dar asas a imaginação, comentando os mais diversos fatos, passando de literatura para a política, da política para as artes, das artes para a prisão do último ladrão. Era um orador de alta classe, porque de pequenas coisas sabia extrair grandes motivos.

Em seu "Dicionário Bibliográfico", o Barão de Studart afirma que Paula Ney foi nomeado diretor da Hospedaria de Emigrantes pelo marechal Floriano Peixoto, e foi destituído do cargo pelo governo de Prudente de Morais. A trajetória de Paula Ney foi interrompida no dia 13 de outubro de 1897, quando faleceu vítima de tuberculose. Tinha 39 anos.






Os cafés da Praça do Ferreira, que Paula Ney provavelmente frequentou, e foto ilustrativa da Praia de Iracema dos anos 90.


Ao longe, em brancas praias embalada

Pelas ondas azuis dos verdes mares

A Fortaleza – a loura desposada

Do sol – dormita à sombra dos palmares


Loura de sol e branca de luares,

Como uma hóstia de luz cristalizada

Entre verbenas e jardins pousada

Na brancura de místicos altares


Lá canta em cada ramo um passarinho

Há pipilos de amor em cada ninho

Na solidão dos verdes matagais...


É minha terra, a terra de Iracema,

O decantado e esplêndido poema

De alegria e beleza universais

 

Extraído dos livros “A História do Ceará Passa Por esta Rua”, de Rogaciano Leite Filho e Fortaleza 1910, Imprensa Universitária/UFC. Publicação FortalezaemFotos. Fotos Wikipédia, Arquivo Nirez e acervo particular. 

 

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Porto Canoa o Resort abandonado de Aracati

 



A promessa é que seria um megaempreendimento à beira-mar, no aprazível litoral de Aracati, nível internacional, com capacidade para receber até 1.100 pessoas. O projeto contava com salão de convenções, auditório com capacidade para 130 pessoas, salas de apoio para a realização de eventos, dois restaurantes, parque aquático, piscinas, lojas, um hotel resort 5 estrelas com 166 apartamentos, uma pousada com 20 apartamentos e três condomínios num total de 96 apartamentos.

O local denominado Porto Canoa foi inaugurado em 1996, com boa parte construída, iniciativa do empresário Clodomir Girão e aporte de capital de sócios estrangeiros. Seria o primeiro grande empreendimento hoteleiro de Canoa Quebrada, mais próximo, porém, da Praia de Majorlândia.  O projeto se arrastou por 10 anos, sem se estabilizar. Os investimentos ficaram escassos e houve debandada dos investidores estrangeiros. O resort nunca chegou aos 100% de ocupação e decaiu mais ao longo do tempo. O Porto Canoa mostrou-se um retumbante fracasso.

Hoje quem passa no sentido Leste a partir de Canoa Quebrada em direção a praia de Majorlândia se depara com os restos da construção: a parte do empreendimento que corresponde ao condomínio de apartamentos adquiridos por particulares, ainda está lá. São três blocos de apartamentos de tamanhos variados, regularmente ocupados, geralmente no sistema de aluguel por temporada, em local isolado, com praia privativa, mas sem acesso, sem infraestrutura por perto, e bem longe dos atrativos da famosa Vila de Canoa Quebrada.

O resto é abandono. As únicas vizinhas são as ruínas e a solidão. A começar pelo acesso pela praia ao resort, uma via em mau estado, cheia de mato, deserta e solitária. À noite, é de se esperar que a escuridão tome de conta. (tem acesso também pela CE 371). As ruínas das construções ficam dos dois lados da estrada, prédios, piscinas, colunas, pisos, azulejos, testemunhas do enorme desperdício de recursos empregados no malogrado projeto hoteleiro, que pretendia ser o maior da região.

De bom e bonito, restam a paisagem natural, o mar verde esmeralda de Aracati, as belas praias e alguns coqueiros, que felizmente não dependem nem dos recursos nem da (falta de) competência de nenhum empreendedor, e continuam formosas. Apesar deles.  


 






Fotos e vídeos: Fortaleza em Fotos nov/2023

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Os Casarões do Centro de Fortaleza

  

A maioria foi demolido, virou estacionamento. Casarões em perfeito estado, carentes de manutenção, é fato, mas perfeitamente recuperáveis. Uma mão de tinta, um remendo no piso, uma correção na fiação elétrica, uma atualizada nas instalações sanitárias, a conservação correta do teto, e pronto. A maioria dos poucos sobreviventes foram construídos em fins do século XIX/primeira metade do século XX. Os materiais empregados, eram importados (louças, pisos, telhas, madeiras, sacadas de ferro, azulejos etc.), e já não são mais empregados nas construções modernas. Tampouco existem peças de reposição disponíveis no mercado. As tintas também eram escassas pelo menos nas cores. Usava-se o cinza nas residências e amarelo nos prédios públicos.  


casarão da Família Gondim: demolido

segunda sede da Fênix Caixeiral: demolida 

Casarão da família de Joaquim Miranda, ultimamente Casarão dos Fabricantes: destruído num incêndio


Esses materiais de acabamento não eram produzidos no Ceará, daí a necessidade de importação deles. Aqui se fabricavam tijolos em quase todo o Estado, enormes, bem-feitos, ligados com massa de areia, cal de ostras e óleo de baleia quando em zonas de praia. Nessa arquitetura do tijolo, entretanto, verificou-se insistência do emprego da argamassa de barro e areia, cujos resultados tantas vezes negativos, punham em risco boa parte das obras, que se rachavam, ora sob o peso dos telhados, ora por acomodação do solo, ocado por formigueiros. Essa particularidade construtiva, comum em outras regiões do País, era notada pelos visitantes, que denunciavam as condições aparentemente pouco estáveis de igrejas, edifícios públicos e moradas de gente importante. Essa técnica de fabricação pode ter sido responsável pela perda de muitos imóveis antigos.  

A arquitetura também é típica daquele período, fachadas rebuscadas, com entalhes, relevos, pórticos, soleiras, lajes com pedra de lioz, importada de Lisboa. Os construtores eram verdadeiros artesãos, com figuras e acabamentos feitos à mão, caprichosamente desenhados, reproduzidas de plantas adquiridas no Velho Mundo. Os ornamentos internos falavam de seus moradores: políticos (sim, sempre foram ricos) ou homens em sua maioria enriquecidos com os lucros do algodão, das fazendas de café, e do comércio, portadores de títulos de nobreza, com título e brasão assinalados nas portas das residências.

Os belos casarões estão sumindo do centro de Fortaleza. O esvaziamento e a falta de novos empreendimentos ou propostas para requalificação da área, contribuem fortemente para essa cultura de apagar o passado. Para incentivar a recuperação e a ocupação, o governo municipal poderia conceder algum incentivo fiscal como a isenção de IPTU ou oferecer parceria na recuperação por um determinado período. Mas sem incentivo, sem interesse, sem valor comercial, muitas vezes produtos de heranças, com vários herdeiros, os imóveis acabam sendo demolidos. Mais fácil, mais barato, menos complicado.

Dos que ainda sobrevivem, ainda que só restem os traços da fachada está a antiga mansão da família Távora, em pleno centro da cidade na esquina das ruas Sena Madureira e Visconde de Saboia. Construído pelo coronel José Pacífico, rico cafeicultor da Serra de Baturité para sua filha Cândida. No velho casarão cinzento da Praça dos Leões nasceu o ex-governador Virgílio Távora, no dia 29 de setembro de 1929, filho de Carlota Augusta de Moraes (filha de Cândida) e do Dr. Manuel do Nascimento Fernandes Távora, militante do movimento tenentista do final da República Velha e plantador de café do Maciço de Baturité.


imagem Marciano Lopes
fachada do Solar dos Távora
a frente do imóvel é parcialmente encoberta por essa estrutura preta que piora a aparência e enfatiza o ar de decadência. 


A fachada como era comum às construções de fins do século XIX/início dos XX exibia inúmeras janelas guarnecidas de sacadas e portas de ferro. As linhas arquitetônicas eram exuberantes com figuras em relevo e arcos de meia volta.  A decoração interior do solar era das mais requintadas, com a utilização de objetos importados da Europa e do Oriente. Hoje, totalmente descaracterizado é utilizado em parte por uma loja de materiais de construção. A outra parte, inclusive a parte que contém um primeiro andar, está desativada e com a fachada preservada. As portas do andar inferior foram fechadas, talvez para evitar ocupações ilegais do imóvel.    

Outro imóvel de grande relevância histórica é o Palacete Carvalho Mota, na esquina das ruas Pedro Pereira com General Sampaio. O casarão foi construído em 1907 para residência da família do coronel Antônio Frederico de Carvalho Motta, comerciante ligado ao comércio de exportação presidente do Banco do Ceará, mais tarde Deputado Estadual; ocupou o cargo de 3° vice-presidente do Estado e chegou o ocupar o cargo de governador de 24 de janeiro a 12 de julho de 1912.



Palacete Carvalho Mota - imagem IPHAN




O palacete está situado na antiga Rua da Cadeia, atual General Sampaio esquina com a Pedro Pereira, em terreno medindo cerca de 700 m². Possui estilo eclético, numa mistura de elementos neoclássicos e art nouveau. Tem dois andares com janelas e portas em arco batido. A família ficou pouco tempo no local em razão de uma tragédia familiar.


Ao longo dos anos o palacete abrigou as instalações da IFOCS, posteriormente DNOCS, vindo a ser desocupado, apenas, ao final da década de 70 com a construção da nova sede da Diretoria Regional no Ceará. Em 1983, o imóvel foi restaurado com base em projeto elaborado pelo IPHAN, para a instalação do Museu das Secas, o qual abrigaria o acervo da instituição. Sem a devida manutenção o Museu das Secas que viria a ocupar uma área relativamente pequena do prédio, terminou por não ter condições de atender ao público que buscava visitá-lo. Ainda sobreviveu entre 1985 e 2004. Depois disso o prédio ficou desocupado, e desde então, está fechado. Hoje é um casarão triste e degradado.  

 

Fontes:

Mansões, Palacetes, Solares e Bangalôs de Fortaleza, de Marciano Lopes. ABC. Fortaleza.2000.

História Abreviada de Fortaleza e Crônicas sobre a Cidade Amada. Mozart Soriano Aderaldo. Fortaleza;/ UFC/Casa de José de Alencar, 1998.  

Virgílio Távora e a transição para o desenvolvimento do Ceará, de Juarez Leitão. Revista do Instituto do Ceará – 2013

Arquitetura no Ceará. O século XIX e algumas antecedências. José Liberal de Castro. Revista do Instituto do Ceará – 2014

http://www.fortalezaemfotos.com.br/2020/01/carvalho-mota-o-homem-por-tras-do.html

fotos acervo Fortaleza em Fotos


segunda-feira, 25 de setembro de 2023

A Primitiva Sociedade Sertaneja

 

Basicamente a sociedade do século XVIII se dividia em duas classes sociais: de um lado, os senhores proprietários de terras, grandes latifundiários detentores do gado, escravos e principalmente, de terras; do outro lado, os “cabras”, constituídos de pequenos proprietários, arrendatários, médios e pequenos comerciantes, funcionários públicos, artesãos, agregados das fazendas, índios escravizados, negros, miseráveis, em diferentes níveis de relação ou dependências com relação aos proprietários de terras.

Casa grande do Umbuzeiro, construída no primeiro quartel do século XVIII, localizada na atual cidade de Aiuaba


Apesar da posse das riquezas e das relações de poder, o modo de vida dessas elites não se se diferenciava muito do restante da população, em virtude da fragilidade econômica local, com secas periódicas, solos ruins, baixa produtividade da terra etc. A diferença entre as casas grandes de fazendeiros e as dos vaqueiros e agregados, não eram tão grandes. Caracterizavam-se pela simplicidade da arquitetura e singeleza das mobílias. Todos tinham os mesmos hábitos alimentares e vestiam roupas simples.

Com a contínua expansão da pecuária e especialmente com os lucros vindos do comércio do charque no século XVIII, tornou-se comum dos fazendeiros com mais posses terem casas nas vilas, onde passavam temporadas como o Natal, a festa da padroeira e as eleições. Contudo, o local de residência do fazendeiro e de sua família, continuava sendo a fazenda de criar gado.

Na terra imperava a violência. As famílias frequentemente mobilizavam seus recursos contra ameaças vizinhas: ataques de outros latifundiários, roubo de gado, disputa por terras, fontes de água ou por razões morais, defesa da honra ofendida. Igualmente havia violência entre as camadas mais humildes. A pobreza, a fome e a escassez de recursos. Os bens eram reduzidos à propriedade de instrumentos de trabalhos, como enxadas, machados e foices, que a dificuldade de os obter os tornavam valiosos, e eram motivo de roubos e assassinatos.

Casa grande do Sitio São Romão, em Orós, construída há mais de 200 anos, com 40 cômodos. Antiga fazenda de exploração agrícola, criação de gado e engenho de cana de açúcar 
imagem DN 


O uso corriqueiro de armas era uma constante preocupação das autoridades que tentavam limitá-las sem muito sucesso. Dessa forma, em qualquer atrito, havia a possibilidade de os envolvidos usarem suas armas e provocarem vítimas.

A autoridade do homem predominava e as mulheres e crianças viviam sob grande opressão, situação ainda mais grave para as mulheres pobres, discriminadas também pela condição social. A mulher deveria ser obediente, submissa e cuidar casa, do homem e da criação dos filhos. O adultério era a maior das afrontas ao marido, punível com derramamento de sangue da adúltera, no chamado “crime de honra”.  

No período colonial eram comuns nas camadas mais pobres da população, os concubinatos (amantes) e amasiamentos (união consensual e estável) considerados crimes pelas autoridades civis e religiosas. Para as camadas dominantes o casamento oficializado era fundamental, por motivos religiosos e manutenção das aparências. Nessas classes sociais os casamentos eram maneiras de reafirmar relações de amizade e manutenção de patrimônio, o interesse dos noivos não era levado em consideração, daí que, muitas vezes estes tinham laços de parentesco e eram prometidos desde o nascimento; ou se conheciam já como noivos, em datas próximas ao casamento.

Entre os proprietários geralmente os casamentos ocorriam entre pessoas da mesma condição social. Contudo, o concubinato poderia quebrar essa regra, pois acontecia de fazendeiros ou autoridades se sentirem atraídos de moças solteiras, pobres, que em troca, ganhavam um certo status, desde que se mantivessem discretas e não afrontasse a boa moral da sociedade. Eram as chamadas “cunhãs” ou a “teúda e manteúda”, que viam na condição de amante uma forma de obter melhores condições de sobrevivência.

Na colônia era crime grave a “alcoviteria”, ou seja, explorar a prostituição. Haviam as chamadas casas de alcouce, um prostibulo eventual, onde o alcoviteiro propiciava o encontro entre homens e mulheres. Tal atividade garantia certa renda para o alcoviteiro que arranjava os encontros, não foram poucos os homens que exploravam seus familiares e senhores que alcovitaram suas escravas.

A sociedade sertaneja caracterizava-se ainda por extremo misticismo e religiosidade, sendo sobretudo, católica, apesar de o catolicismo ter sofrido um processo de sincretismo misturando-se a símbolos religiosos africanos e indígenas.

 

Fonte:

História do Ceará, de Airton de Farias