quinta-feira, 4 de julho de 2024

O Bispo de Sobral: pela moral e os bons costumes

centro de Sobral (imagem internet)


A edição do jornal "O Correio", do dia 9 de outubro de 1919, inicia uma severa campanha pela moralidade em Sobral, protestando contra a prostituição na cidade, pedindo “saneamento radical contra o meretrício”, o que resulta em grande polêmica com o juiz Clovodeu Arruda, de ponto de vista bem mais flexível no assunto. O juiz via as prostitutas, a maioria oriundas de famílias muito pobres, como válvulas de escape da sociedade, pela proteção que ofereciam às moças ricas, menos assediadas pelos noivos e namorados, uma vez que eram bem atendidos na zona.

O jornal ainda denuncia os abusos cometidos por moças indecentes, danças provocantes como tango e o foxtrote, filmes que estimulam o lenocínio e o adultério, revistas e romances obscenos. Chama a atenção para a inércia das autoridades em punir os responsáveis por tais divulgações, e ignorar os endereços das decaídas, presentes em quase todas as travessas da cidade.

O jornal culpa a tecnologia a serviço do pecado, e responsabiliza “esses cobiçados automóveis, as tantas casas de pasto, lanternas elétricas que permitem a alguns galgar muros e telhados pelas misérias que nos envergonham e aviltam”. Ressaltava que senhoras e moças de mangas curtas ou vestidos decotados não deveriam ir às igrejas, receber sacramentos ou amadrinhar inocentes, bem como o uso de saias evasês e cabelos à la home.  

A campanha contava com o apoio do próprio bispo Dom José, que em artigo publicado no dia 22 de janeiro, dirige suas críticas aos hábitos das fiéis: “na igreja, a moça sobralense é só e toda de Deus; se por acaso lhe acode ao pensamento  a imagem do seu preferido, é só e para entrega-lo a mais e mais aos bons cuidados da Previdência Divina.”

Do outro lado, Deolindo Barreto, que durante muito tempo pusera seu jornal "A Lucta", a serviço do bispo, já se desentendera com ele por causa da campanha eleitoral. Por isso, dá vazão a seu espírito galhofeiro na matéria “JB pede noiva”

“tendo os virtuosos diretores da Igreja nesta cidade proibido as senhoritas de irem aos bailes, teatro, futebol, avenida e que os homens nos templos olhem para as mesmas...”

Apesar do olhar atento da igreja, o povo se divertia para valer, fosse no Grêmio ou  no Clube dos Democratas, nos passeios de bonde da estrada de Ferro até a Avenida da Cruz das Almas, e até em canoas, quando o Acaraú invadia a cidade, apesar do medo do inferno, e da vigilância do bispo, que ameaçava os pecadores. Inclusive porque, nem todos os padres pareciam concordar com tais crenças, e sempre apareciam alguns arranjos discretos, onde nasciam "sobrinhos", que mesmo não sendo oficialmente reconhecidos, eram assistidos financeiramente pela vida afora.

E havia muitos casos, uns escondidos, outros de domínio público que caíam na boca do povo e desautorizava a rigidez moral do bispo. Havia o caso do padre José Palhano, que tinha fama de conquistador e era acusado de receber a visita de amigas, altas horas da noite. A reputação do padre não chegou a ser afetada, nem mesmo depois da manchete do jornal "Diário do Povo", de Jáder de Carvalho, apontando o padre como protagonista de animados encontros amorosos em apartamento do Excelsior Hotel em Fortaleza. Muito menos pela agressão praticada contra um rapaz da sociedade, que queria namorar uma moça por quem o padre nutria uma paixão.

Ficou na lembrança de muitos a história do rapto de uma moça pelo então vigário de Coreaú. Os irmãos dela perseguiram o casal e testemunhas descreveram a figura do padre em fuga, "a batina negra esvoaçando ao vento, a cavalo, levando a noiva na garupa"; de repente estaca, no meio da estrada, saca o revolver e corre para fugir dos tiros desferidos pelos futuros cunhados.

Houve ainda o caso da diretora da Pia União das Filhas de Maria, moça de virtudes tão reconhecidas que, por autorização do bispo, mantinha em sua casa um gabinete espiritual para dar consultas gratuitas sobre assuntos religiosos. Era tamanho o respeito que desfrutava, que uma vez recebeu o encargo de preparar um jovem aspirante a seminarista, rapaz bronco de espírito, mas de bela compleição física. Em meio às aulas de religião, a carne falou mais alto. E a beata ao invés de colocar o jovem cristão nos assuntos divinos, encaminhou-o para sua cama. Casaram-se às pressas.

Alheio aos fatos, o bispo fechado em seus conceitos de céu/inferno, continuava firme contra a luxúria de seus fiéis. Homens não podiam entrar no Colégio Sant’Ana, a não ser padres ou professores idosos. As integrantes da irmandade “Filhas de Maria” sofriam ao serem obrigadas a vestirem roupas que lhes cobriam o corpo todo, naquelas altas temperaturas, sob o sol ardente de Sobral. O vestido era de mangas compridas e as meias iam até os joelhos; tinham ainda de usar combinação que cobrisse até três quartos do braço. Além disso não podiam frequentar nem o sereno das festas.


Santa Casa de Sobral (imagem blog Sobral na História)

Colégio Sant'Ana (pinterest)


As senhoritas da sociedade encontraram uma saída para driblar as exigentes normas da igreja: inventaram umas mangas removíveis que cobriam os braços, apenas quando estavam na igreja. Ao saírem se descobriam, fugindo do calor insuportável.

Conta-se que Dom José resistiu bravamente à instalação do Rotary e do Lions Clube. Quando finalmente concordou que o Lions fosse fundado na cidade, estava já bem idoso. Recebeu uma comitiva formada por dirigentes da entidade e foi convidado a assistir à primeira reunião. A certa altura, para lisonjeá-lo, um dos visitantes disse que o bispo mandava na cidade. ao que Dom José respondeu 

– mando nada, quem manda é a Chica Agostinha. Fecho o cabaré dela na quarta e ela reabre no sábado.

 


Por mais de 50 anos Dom José – José Tupinambá da Frota  (1882 – 1959) – moldou Sobral à sua imagem e semelhança. Num extremo da cidade, edificou em dez anos de luta, a Santa Casa de Misericórdia, o melhor hospital da região; no outro fundou o Seminário, cujas acomodações abrigam a Universidade do Vale do Acaraú; montou o Colégio Sobralense para rapazes. Para viabilizar a Colégio Sant’Ana, cedeu o palácio episcopal, destinado a educação feminina, antiga residência do Senador Paula Pessoa. Instalou o Abrigo Coração de Jesus para acolher a velhice desamparada. Montou o Banco Popular de Sobral, depois BANCESA. Fundou o Correio da Semana e o Museu Diocesano.

Não contente com tudo isso, escreveu a história de Sobral. Nada passou despercebido ao gênio realizador de Dom José. Viveu e morreu se defendendo dos que lhe apontavam a ostensiva militância político-partidária.

 

Extraído do livro: Clero, Nobreza e Povo de Sobral, de Lustosa da Costa. Rio – São Paulo – Fortaleza: ABC Editora, 2004.     

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