segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Cem Anos do Rádio No Brasil

 A história da Radiodifusão no Brasil começa oficialmente no dia  7 de setembro de 1922, com a transmissão um discurso do então Presidente Epitácio Pessoa, em comemoração ao centenário da Independência do Brasil. Porém a instalação do rádio de fato ocorreu efetivamente alguns meses depois, em 20 de abril de 1923 com a criação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. A existência do rádio foi possibilitada pela união de três tecnologias: a telegrafia, o telefone sem fio e as ondas de transmissão.



cartão de divulgação distribuído pela Rádio Iracema (imagem internet)

A emissora pioneira não tinha vínculos governamentais nem patrocinadores empresariais, legalmente, constituiu-se sob a forma de associação, reunindo inúmeros associados, popularmente chamados filiados, que contribuíam mensalmente com certa quantia monetária para mantê-la e cobrir as despesas normais de funcionamento.


Seus idealizadores foram intelectuais de diversas áreas, influenciados por Henrique Morize e Edgar Roquette-Pinto, e a emissora tinha uma proposta de caráter educativo, inclusive com aulas disciplinares na programação. Em fins dos anos 1920, surgiu uma outra emissora que revolucionou a maneira de fazer rádio no Brasil. Trata-se da Rádio Mayring Veiga, também no Rio de Janeiro, que se tornou a primeira emissora comercial do país e criou o rádio espetáculo, com apresentadores e cantores fixos, e programação que serviu de   modelo para diversas emissoras criadas no país naquele período.


No Ceará, a primeira emissora oficialmente instalada, foi a Ceará Rádio Clube – PRE 9, inaugurada em 1934, iniciativa do comerciante José Demétrio Dummar, sírio que migrara para o Ceará em 1910. Dummar já vinha fazendo diversas experiências para instalar uma emissora de rádio local desde 1931. Mesmo ainda não tivesse emissoras no Ceará, os aparelhos de rádio podiam captar sinais de emissoras de outros estados e até do exterior.




Fachada do prédio da Ceará Rádio Clube, em 1936, no bairro Damas  (fotos Rádio Universitária)

Programa de auditório na Ceará Rádio Clube: a partir da esquerda: Keyla Vidigal (cantora); Barbosa (locutor-radioator); Nozinho Silva (cantor); Mirian Silveira (radioatriz); Ismy Fernandes (radioatriz); Guilherme Neto (cantor e produtor); João Ramos (locutor-apresentador); Maria José Braz (radio atriz); Laura Santos (radio atriz) e Marilena Romero (cantora).
do livro de Marciano Lopes - Os Dourados Anos


A PRE-9 começou a funcionar precariamente em 1933, sendo oficializada a 30 de maio do ano seguinte.  O número de aparelhos era reduzido – na verdade, era um artigo de luxo, acessível a poucas pessoas, da mesma forma que era o aparelho de TV na época da inauguração da televisão no Ceará, em 1960 – embora, depois tenha se popularizado.


Apenas em 1948 a PRE-9 ganharia uma concorrente, com a inauguração da Rádio Iracema de Fortaleza, iniciativa dos irmãos José e Flávio Parente, associados a José Josino da Costa. A nova emissora foi instalada no Edifício Vitória, na esquina das ruas Guilherme Rocha e Barão do Rio Branco, onde ocupava o segundo andar e a “terrace” da cobertura.


O rádio viveu seu apogeu nos anos 40 e 50, e ao final da década de 1950, Fortaleza é a sétima capital brasileira com cinco estações de rádio: Ceará Rádio Clube, Rádios Iracema, Uirapuru, Verdes Mares e Dragão do Mar. Entrevista personalidades e políticos, cobre partidas de futebol, transmite concursos de misses, encena grandiosas novelas,  populariza cantores, atores e locutores e conta, para quem está em casa, as tragédias e comédias das ruas.



Prédio da Rádio Uirapuru, no centro, na esquina das ruas Clarindo de Queiroz e general Sampaio (imagem Arquivo Nirez)


Não se efetivavam inaugurações ou comemorações oficiais sem a presença de microfones. O rádio está em toda a parte, fala dos estádios, dos teatros, do Palacio da luz, do Aeroporto; não falta nem às festas públicas nem às despedidas dos que se vão.



Auditório da Rádio Nacional no Rio de Janeiro (foto agência Brasil EBC)

Um capítulo à parte no rádio cearense, foram os programas de auditório, criados na Rádio Nacional, no Rio de Janeiro, e que aqui se tornaram célebres, com apresentadores e estrelas locais, apresentados nas dependências da Ceará Rádio Clube e Rádio Iracema de Fortaleza. Os auditórios eram frequentados por todas as classes sociais e até a chamada classe A comparecia, a prova eram os carrões da época estacionados em volta das sedes da PRE-9 e da Rádio Iracema: “Cadilaques, “Aero-Willys” e “Chambords”. Sem outras opções além dos cinemas e das sorveterias, os programas de auditório eram um convite à descontração e ao mais puro relax.

    

Nas palavras de Marciano Lopes, o rádio praticado no Ceará nas décadas 40 e 50, tinha o glamour que naqueles tempos coroava todos os acontecimentos relacionados com a arte. E se o rádio não tinha a magia da imagem, como o cinema e a já emergente televisão, possuía, por outro lado, o fascínio e mistério daquilo que não se vê, só se ouve.


O rádio foi o principal veículo de comunicação no Estado até 1960, quando a televisão se tornou uma realidade para os cearenses, dez anos depois de chegar ao Brasil, o que não impediu a criação de novas emissoras de rádio a exemplo da Rádio Assunção, criada em 1962.


A pegadinha de Orson Wells

 


O poder da rádio sobre o comportamento das pessoas ficou comprovado com o histórico episódio de "A Guerra dos Mundos", uma transmissão radiofônica feita nos Estados Unidos, por Orson Wells, em 1938. 

 

Na noite de 30 de outubro, a rede de rádio CBS interrompeu sua programação musical para noticiar uma suposta invasão de marcianos. A "notícia em edição extraordinária", na verdade, era o começo de uma peça de radio teatro, que não só ajudou a CBS a bater a emissora concorrente (NBC), como também desencadeou pânico em várias cidades norte-americanas. "A invasão dos marcianos" durou apenas uma hora, mas marcou definitivamente a história do rádio.


O programa narrou a chegada de centenas de marcianos a bordo de naves extraterrestres à cidade de Grover's Mill, no Estado de Nova Jersey. A adaptação, produção e direção da peça eram do então jovem e quase desconhecido ator e diretor de cinema norte-americano Orson Welles.


A dramatização, transmitida às vésperas do halloween (dia das bruxas), em forma de programa jornalístico, tinha todas as características do radio jornalismo da época, às quais os ouvintes estavam acostumados. Reportagens externas, entrevistas com testemunhas que estariam vivenciando o acontecimento, opiniões de peritos e autoridades, efeitos sonoros, sons ambientes, gritos, a emoção dos supostos repórteres e comentaristas. Tudo dava impressão de o fato estar sendo transmitido ao vivo.


A CBS calculou, na época, que o programa foi ouvido por cerca de seis milhões de pessoas, das quais metade o sintonizou quando já havia começado, perdendo a introdução que informava tratar-se do radio teatro semanal. Pelo menos 1,2 milhão de pessoas acreditou ser um fato real. Dessas, meio milhão teve certeza de que o perigo era iminente, entrando em pânico, sobrecarregando linhas telefônicas, com aglomerações nas ruas e congestionamentos causados por ouvintes apavorados tentando fugir do perigo.


O medo paralisou três cidades e houve pânico principalmente em localidades próximas a Nova Jersey, de onde a CBS transmitia e onde Welles ambientou sua história. Houve fuga em massa e reações desesperadas de moradores também em Newark e Nova York. O jornal Daily News resumiu na manchete do dia seguinte a reação dos ouvintes: Guerra falsa no rádio espalha terror pelos Estados Unidos”  

  

 

Fontes consultadas:

LOPES, Marciano. Coisas que o Tempo Levou. A Era do rádio no Ceará. Fortaleza, 1994.

Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. Disponível em https://atlas.fgv.br/verbetes/radio-sociedade-do-rio-de-janeiro

Jornal Diário do Nordeste – edição de 22.12.2007

1938: Pânico após transmissão de Guerra dos Mundos. Disponível em https://www.dw.com/pt-br/1938-p%C3%A2nico-ap%C3%B3s-transmiss%C3%A3o-de-guerra-dos-mundos/a-956037


 

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Feitosas X Montes - Os Poderosos rivais do Sertão dos Inhamuns

 Uma das várias versões para a origem da família Feitosa, é que o tronco do clã é um português de nome João Alves, nascido numa ilha chamada Feitosa. Daí que ficou conhecido como João Alves Feitosa que um dia deu com os costados em terras brasileiras; teria, supostamente, chegado ao Brasil na primeira metade do século XVII, casando-se com uma filha do coronel Manuel Martins Chaves, alagoano de Penedo. Tiveram dois filhos: o comissário Lourenço Alves Feitosa, casado com Antônia de Oliveira Leite, e o coronel Francisco Alves Feitosa, casado com Isabel do Monte.


As Sesmarias eram terrenos doados pelo governo português para exploração e povoamento. Eram preferencialmente instaladas próximas a cursos d'água,  como o Rio Jaguaribe (foto do IBGE nos 60) 

Residentes no Engenho Currais de Serinhaém, em Pernambuco, a família Feitosa, que se supõe haver-se comprometido em levantes ocorridos na província, e temendo sofrer perseguições, fugiu para o interior do Ceará, onde se fixou nas proximidades do Icó. Lourenço Alves Feitosa, o chefe da família, que aqui tomou o título de Alferes Comissário, deixou sua família em Pernambuco e veio em companhia do irmão, Francisco Alves Feitosa, do Coronel Pedro Alves Feitosa e de Manuel Ferreira Ferro. Lourenço se estabeleceu na Fazenda Cachoeirinha, que adquiriu no riacho Cariuzinho.


Francisco Alves Feitosa se casou com uma viúva irmã do Capitão- Mor Geraldo do Monte, e em pouco tempo os cunhados se desentenderam por questões de negócios e de posse de terras. Os coronéis Francisco Alves Feitosa e Lourenço Alves Feitosa ao chegarem ao sertão dos Inhamuns estruturam a maior comunidade rural da Capitania do Ceará. O comissário Lourenço Alves Feitosa chegou a ter 22 sesmarias e com o seu irmão Francisco Alves Feitosa dominaram uma área de aproximadamente 30.000 quilômetros quadrados.


A família da esposa de Francisco Alves Feitosa, era contemporânea dos Feitosas, cujo chefe era Geraldo do Monte, procedente da Vila de Penedo, que veio para a Capitania do Ceará trazendo consigo filhos, sobrinhos e outros parentes que se espalharam pelos sertões, adquirindo fazendas de criar gado, nos últimos anos do século XVII ou início do século XVIII.

 

Francisco do Monte, irmão de Geraldo, fixou-se no Icó, e lá perdeu uma filha, que para pesar de sua mãe, foi enterrada no campo por falta de uma igreja. Seu marido para a consolar, prometeu que os restos mortais da filha seriam transferidos para uma igreja, e para isto, tratou de estabelecer um patrimônio de meia légua de terras, no centro do qual edificou uma capela a Nossa Senhora da Expectação, ainda na primeira metade do século XVIII. Algum tempo depois a capela serviu de matriz à freguesia criada no Arraial do Icó.


Igreja N.S. da Expectação, em Icó, era originalmente uma pequena capela construída por Geraldo do Monte (imagem IBGE)


Francisco Alves Feitosa, receoso da fama de valente de seu cunhado Geraldo do Monte, retirou-se para uma fazenda que possuía na ribeira dos Bastiões, e durante sua estadia naquele sítio travou relações com o chefe da tribo dos índios Jucás, que o levou a um local onde assistiam na ribeira do riacho Jucá, um dos afluentes do Jaguaribe, que se lança nele, abaixo de Arneirós.


Os Feitosas foram informados por esse irmão da grande oportunidade que era essa ribeira para a criação de gado, e resolveram solicitar por sesmaria, mas não guardaram o devido sigilo, e Geraldo do Monte, informado das descobertas feitas pelos Feitosas, então seus inimigos declarados, antecipou-se ao cunhado e solicitou a posse dos terrenos de Jucá, no que foi atendido.


Mas a concessão de sesmarias estava sujeita a prazos para ocupação, demarcação e medição das terras. Como esse prazo não foi cumprido, Francisco Alves Feitosa conseguiu, 6 anos depois, anular a concessão dada a Geraldo do Monte, obtendo a posse do território do qual fora descobridor, e providenciou a medição e ocupação.


Geraldo do Monte, despeitado com a atitude do cunhado, tentou de todas as maneiras evitar a posse dos terrenos. Depois de uma longa questão entre os dois poderosos rivais, estes acabaram lançando mãos das armas e deram início a um longo conflito entre as duas famílias. A partir dessa primeira desavença, houve uma série de confrontos que foram ficando cada vez mais mortíferos. Os chefes de uma e outra parte viviam incessantemente debaixo de armas e prontos a atender a qualquer demanda. Toda a capitania acabou sofrendo as consequências dessa luta. A população, refém, viu-se obrigada a pronunciar-se em favor de uma ou de outra parte, porque a neutralidade era vista como crime capital.


Os Feitosas abandonaram as imediações do Icó território dos inimigos e foram se aquartelar nas terras do vale do Jucá e do Alto Jaguaribe, cuja população se pronunciou a favor deles. Dos encontros sangrentos havidos entre os dois grupos, muitas localidades receberam denominações que ainda conservam, provenientes de algum episódio desta contenda. Na Ribeira do Salgado existem o Sítio das Emboscadas, Tropas, Arraial da Pendência; no Jaguaribe encontra-se o das Almas, dos Defuntos, dos Ossos, das Trincheiras, do Bom Sucesso, o Saco das Balas e muitos outros, celebrizados por algum incidente sinistro.


O conflito teve início em 1714 e terminou em 1724, depois de muitas intervenções do governo, que nomeou juízes, mediadores, ouvidores e até governadores para intermediarem a contenda. As mortes de indígenas, colonos, fazendeiros foram incontáveis, visto que não havia controle sobre os embates. Depois que o governador da capitania decidiu desarmar as duas famílias e sendo o coronel Feitosa avisado por um oficial, refugiou-se em sua fazenda Buriti, no Piauí. Já Geraldo do Monte foi forçado a abandonar sua fazenda das Cabaças, recolhendo-se ao Boqueirão, na margem do Jaguaribe, onde se supõe, terminou os seus dias.  


O comissário Lourenço Alves Feitosa, que foi o maior sesmeiro do Ceará, perdeu mulher e seu único filho, e quando faleceu deixou toda a sua fortuna para seu irmão Francisco Alves Feitosa, que passou a condição de maior latifundiário do sertão dos Inhamuns.



Sertão dos Inhamuns - imagem recente (fonte Diário do Nordeste)

Os descendentes dos Feitosas continuaram a ocupar a região, no sertão dos Inhamuns, onde fundaram a Vila de Cococi, situada dentro de uma grande fazenda. Depois foi elevado à categoria de Distrito, anexado ao município de Tauá. Em 1956, o distrito do Cococi passou a fazer parte do recém-criado município de Parambu. Pela lei estadual nº 3858, de 17 de outubro de 1957, o distrito de Cococi foi elevado à condição de município, desmembrado de Parambu.


No Censo demográfico realizado em 1960, o município do Cococi contava com 4.064 habitantes, 2.181 homens e 1.883 mulheres. Passados pouco mais de oito anos, uma nova lei estadual, a de n° 8339, de 14 de dezembro de 1965, extinguiu o município de Cococi que voltou a ser distrito subordinado a Parambu.



Casa abandonada no Cococi (imagem Pinterest)

Os motivos nunca ficaram claros: a versão mais conhecida conta que o prefeito teria cometido irregularidades como desvio de verbas destinadas ao município, o que teria desagradado ao Governo Federal, que teriam determinado a extinção. Mas podemos observar que a extinção de Cococi foi viabilizada por meio de uma lei estadual (8339), no Governo Virgílio Távora (1963-1966). Pelo mesmo instrumento legal, vários municípios cearenses foram extintos, sendo que a maioria teria essa condição revogada mais tarde, recuperando o status de cidades com autonomia administrativa. 

   

Na sua curta existência como município, Cococi teve 2 prefeitos, ambos da família Feitosa. O município estava instalado em terras particulares, de uma única família. À época da extinção, o prefeito, secretários e vereadores tinham todos o mesmo sobrenome Feitosa. Tinha uma boa estrutura, contava com prefeitura, câmara municipal, uma praça, hotel, cartório, posto fiscal, escola, amplas residências e uma igreja matriz.


Igreja de N. S. da Conceição, no Cococi, construída em 1771 pelo coronel Francisco Alves Feitosa. (imagem Diário do Nordeste)

A cidade e atual distrito do Cococi nasceu com a chegada dos Feitosas e morreu aos poucos, à medida que eles se foram. Dos velhos tempos, restaram a igreja matriz, uma meia dúzia de moradores, e quase nenhuma expectativa, a não ser a vinda de alguns curiosos, que de vez em quando visitam as ruínas e o velho cemitério, que paradoxalmente, são as maiores atrações do lugar.


 

Fontes consultadas:

O Clã dos Inhamuns, de Nertan Macedo. Edições UFC, 1966

IBGE – Enciclopédia dos Municípios Brasileiros – 1959

O Ceará dos Anos 90, censo cultural.

A Memória dos Conflitos Territoriais entre Famílias na construção da Sociedade nos Sertões dos Inhamuns, de Cristiane e Castro Feitosa Melo. Disponível em  https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/24857/3/2012_art_cecfmelo.pdf