sábado, 29 de setembro de 2018

A Arquitetura dos Sertões

Icó - Igreja de Nossa Senhora da Conceição do Monte

A luta dos povoadores no interior contra as várias nações indígenas, foi homérica. Trazidos pela esperança de encontrar campos de boas pastagens para a criação de gado, pois a região não oferecia as tentações dos latifúndios açucareiros, nem do ouro ou diamantes. Esses povoadores vinham da Paraíba, Pernambuco e de Alagoas, pelo sul, espraiando-se nas ribeiras ou vales dos rios, rumo da costa. 

Assim, o povoamento se fez do interior para o litoral. Fundaram as primeiras povoações que mais tarde, se tornariam vilas e cidades: Crato, Lavras da Mangabeira, Cachoeira, Icó. Ocuparam a região do Banabuiú, do Quixeramobim, e do Jaguaribe pelo curso do qual vieram até Aracati, quase na foz. Dali se espalharam para outros pontos do território.

O gado marchava à frente deles. Tomavam conta das terras e levantavam a casa grande de taipa da fazenda. Cercavam-se de agregados e vaqueiros, geralmente índios ou mestiços. Tinham poucos escravos, os necessários aos serviços domésticos. Dominavam como verdadeiros senhores feudais e, às vezes guerreavam entre si. Assim, iam se apoderando dos sertões imensos. E esses desbravadores escreveram o chamado Ciclo do Gado.

Em todos os ciclos da história brasileira, é a religião quem inspira e norteia a arte, pois é nas igrejas, capelas e conventos que ela se sublima. Os solares, os edifícios civis ou militares, sempre ficam em segundo plano. O Ciclo do Açúcar povoa de mosteiros e templos, a Bahia e Pernambuco. O Ciclo do Ouro coroa os montes de Minas Gerais com as capelas e igrejas, recheadas de talhas douradas. A arte do Ciclo do Gado é a mais humilde, toda a sua arquitetura se faz, pela falta da pedra apropriada para a obra, em simples alvenaria, na qual se executa uma ornamentação própria. Nem esculturas, nem cinzeladuras, nem obras de talha, nem ouro, nem mármore e nem azulejos. Os artistas anônimos obtêm com linhas, na combinação ingênua das curvas e dos ornatos rectilíneos, os efeitos decorativos.

Até agora, pouco se pesquisou sobre essa arte escondida, filha da pobreza dos sertões nordestinos e por isso, talvez, mais cheia de sentimento e de humanidade. Pouco se sabe ou mesmo nada se sabe sobre os seus autores. No entanto, onde ainda não foram desfiguradas, as suas construções de pedra e cal, ornamentadas com volutas e arrecadas de simples reboco, se mostram como documento vivo, de um passado absolutamente brasileiro, sem nenhuma influência do aventurismo interesseiro do diamante ou da produção de açúcar, que atraiu o holandês às nossas plagas e quase deixa em suas mãos heréticas, uma bela parte do velho Brasil. 

Com relação aos templos do sertão, segundo o professor Liberal de Castro, em boa parte, as igrejas paroquiais e outras igrejas de porte, iniciadas no século XVIII conheceram posterior conclusão. Sempre edificadas de modo parcelado, geralmente tinham como núcleo gerador pequenas capelas de fazendas ou de missões, ampliadas por sucessivos acréscimos. Essas adições tendiam a busca de um traço oitocentista, conseguida com uma planta final de desenho retangular, na qual a pequena capela primitiva, absorvida pelo conjunto, se transformava na capela mor da igreja ampliada.
Nesse processo de seguidos acréscimos, são raras as exceções, identificando-se como obras integralmente executadas no século XVIII, apenas a Igreja de Nossa Senhora da Assunção, em Viçosa do Ceará (iniciada em 1695), e a Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Almofala (primeira metade do século XVIII).

A Igreja de Almofala, localizado no norte do Estado, erguida perto do mar por uma irmandade local, encontra-se atualmente descontextualizada de sua ambientação original. Permaneceu quarenta anos soterrada pelas dunas, quando ressurgiu por força dos mesmos ventos que a haviam sepultado. Ao que se supõe, obedeceu a projeto de feição barroca, vindo da Bahia, com torre filiada às do convento lusitano de Mafra. 


Igreja de Nossa Senhora da Conceição de  Almofala 

A Igreja de Almofala foi concluída em 1712, levantada pelas antigas missões jesuítas sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição.

Na primitiva igreja da missão Jesuítica na Ibiapaba, praticamente refeita no século XIX, restaram talvez somente uma das torres e a capela-mor, em cujo forro subsiste um magnífico conjunto de doze painéis pintados com alegorias barrocas, dedicados às virtudes capitais e cardeais e aos sentidos humanos.


Igreja de Nossa Senhora da Assunção de Viçosa do Ceará

A mais antiga do Estado, construída pelos jesuítas, entre 1695 e 1700. Na época, os jesuítas catequizavam os índios Tabajaras e, para atraí-los à fé católica, esculpiram a imagem de Nossa Senhora da Assunção à imagem e semelhança das mulheres daquela etnia. Ao longo dos anos, a igreja – em estilo barroco e fachada eclética – foi sendo reformada e descaracterizada, perdeu o altar do coral, e houve a inclusão de cerâmicas em seus interior e pedras na fachada.

Muitas igrejas, embora guardassem nas fachadas traços de um barroco sertanejo, muitas tiveram seus espaços alterados por introdução de arcaria interna, por influência do plano matriz da capital. Filiam-se a essas expressões formais mistas, a Sé de Sobral, de Nossa Senhora da Conceição da Caiçara, a matriz da Expectação, em Icó, a Igreja do Rosário em Aracati, a matriz do Rosário, em Tauá, a de São José, na Granja e em Aquiraz, da Palma, em Baturité, de Santo Antônio, em Quixeramobim. Muitas dessas igrejas cearenses, mostram-se prejudicadas pelo desenho oitocentistas das torres, quase sempre piramidais, por vezes com perfis desproporcionais e até grosseiros. São elas:
    
Aquiraz – Igreja matriz de São José de Ribamar 

foto de Muhammad Said


Construída no século XVIII, por volta de 1713, é a segunda igreja mais antiga do Ceará. O templo apresenta ecletismo no estilo, predominando os traços barrocos e neoclássicos, frutos das várias modificações que passou ao longo dos anos. Alguns detalhes, ainda originais, impressionam por sua beleza e requinte. São eles, dentre outros; As três grandes portas almofadadas da entrada principal, o púlpito de madeira lavrada e os painéis pintados no forro da capela-mor, os quais provavelmente foram obras de índios catequizados. Destaca-se no nicho central do altar-mor a imagem do padroeiro São José de Ribamar, calçado de botas, relembrando o bandeirante audaz. O templo tem a planta em forma de retângulo, a coberta em telha canal com madeiramento aparente, sem forro na nave. Teve sua coberta e madeiramento recuperados em 1980, frente ao precário estado em que se encontravam. Apresenta em elevação, duas torres quadrangulares encimadas por pirâmides de base octogonal. Seu desenho é muito simples, mostrando “uma herança plástica das primeiras capelas nacionais de origem jesuítica, espalhadas por todo o Brasil e que teriam como provável fonte nordestina, a Igreja da Graça em Olinda.

Sobral – Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Caiçara
Igreja da Sé

Construção iniciada em 1746. Esta igreja, embora simbolicamente muito importante para a região, não teve uma construção muito sólida, pois com apenas 14 anos de construída já ameaçava ruir. Em 1762, por razões de segurança, foi demolida a capela mor e no ano de 1778 foi levantada ao seu lado a nova matriz que perdura até os dias atuais. À época da construção, Sobral já era uma próspera vila, e a igreja ficou conhecida como a Matriz da Caiçara. Sua história se funde com o povoamento de Sobral. A Matriz mistura elementos do estilo tardo-barroca (ou rococó) com acréscimos decorativos como movimento ondulatório nas cornijas, os frontões altos, tratamentos em relevos esculpidos e coroagem com bulbosos das torres. No pórtico frontispicial a construção tem acabamentos com acervos de pedraria em lioz, vindos de Portugal. Segundo Liberal de Castro, a Sé de Sobral conta com o frontispício mais elegante do Ceará. 

Icó - Igreja de Nossa Senhora da Expectação


O templo é a construção mais antiga de Icó, datada de 1709. Em 1728 passou a ser chamada de Nossa Senhora da Expectação do Icó, e mais tarde, apenas Igreja de Nossa Senhora da Expectação. Nas igrejas cearenses há raríssimos casos de sacristias perpendiculares ao eixo da igreja, como ocorre na Matriz da Expectação do Icó. O espaço interno sofreu alterações, como a abertura de arcadas para os corredores laterais. A igreja ainda conserva o sacrário original em talha, a prataria e imagens antigas. O retábulo original, entalhado por António Corrêa d’Araújo, natural da freguesia de São Miguel de Seide, já não mais existe.

Aracati – Igreja do Rosário


A Igreja de Nossa senhora do Rosário dos Brancos é uma construção dos primeiros anos do século XVIII, concluída na segunda metade do século XIX.  Segundo o livro da Irmandade do Santíssimo Sacramento, uma capela deu origem à igreja. Era coberta de palha, tinha a fachada de tijolos e as paredes laterais de taipa. Em sua estrutura física encontra-se uma porta central ladeada por duas outras entalhadas a ponta de faca e com almofadas em relevo. Na fachada podem-se observar os sinos, o relógio carrilhão e o registro da data de sua edificação escrita em romanos o ano de 1785. Seu interior é rico em obras de talha e imagens.  A exemplo da grande maioria das igrejas cearenses, a igreja de Nossa Senhora do Rosário se insere na lógica da organização espacial dos templos religiosos brasileiros com herança lusitana. A planta retangular apresenta nave central com corredores laterais que dão acesso à sacristia e ao consistório. Ao contrário da maioria das igrejas cearenses, a planta da Matriz do Aracati não foi alterada com a introdução de aberturas em arcos nas paredes dos corredores laterais que dão para a nave central. Como outras igrejas do Ceará, possui uma única torre, decorrente da falta de meios para a construção da segunda. A fachada é alinhada por cunhais e as três portadas marcadas com um trabalho de arenito baiano. Um frontão triangular com linhas curvas e volutas arremata o corpo principal da igreja. 


Tauá – Igreja do Rosário

foto do site férias tur - fotógrafo Aragão 


Situada à margem esquerda do rio Trici, a Igreja matriz de N. Sra. Do Rosário foi construída em 1762 e, em volta dela, cresceu a cidade de Tauá. Situada em terreno mais elevado, ainda se destaca na paisagem urbana, como ponto focal da Praça Dr. Alberto Feitosa lima. De desenho simples, com poucos ornamentos, a edificação possui planta retangular, nave principal e naves laterais ligadas à capela-mor por arcos plenos, possivelmente acrescidas em época posterior. Separando a nave principal das duas laterais, grossas paredes de 1,00m de espessura, formam quatro arcos plenos com detalhes em alvenaria de cada lado. Os altares são trabalhados em alvenaria e sobre a nave principal, existe uma abóbada em pedra bruta, característica marcante da construção, que a distingue das demais da região. A imagem da padroeira, no altar principal, foi importada de Portugal ainda na época da colônia. O forro do altar é executado em madeira, pintado de azul com detalhes na cor prata. A igreja não possui coro, destacando-se a abóbada da nave como significativo elemento arquitetônico do templo. 

Granja – Igreja de São José


foto Wikimedia Commons

A primitiva matriz de Macaboqueira (atual Granja) foi inaugurada no dia 8 de setembro de 1759, em louvor a São José. No dia seguinte foi criada e instalada a Confraria ou Irmandade do Santíssimo Sacramento. Ao longo dos anos passou  por várias reformas e ampliações. No ano de 1879, aproveitando a mão de obra de milhares de retirantes que se refugiaram em Granja, na grande seca de 1877/79, o templo passou pela maior das reformas: foram abertas 6 arcadas do corpo da igreja, e mais duas portas da frente, por existir somente uma, a principal; foram feitos os dois corredores, as tribunas soalhadas, as grades, soalhos e forrado o corpo da igreja; limparam e montaram todo edifício; colocaram grades de ferro e vidraças nas janelas do coro, reformaram o frontispício, colocaram nele cruz de ferro, relógio e construíram o patamar, dando tudo por concluído no princípio de 1880, quando terminou a terrível seca. 

Baturité – Igreja da Palma


O templo foi construído em meados do século XVIII, quando da fundação da antiga Vila Real de Monte Mor o Novo d’América, atual cidade de Baturité. Com arquitetura em estilo bizantino gótico com predominação no barroco, a igreja venera a padroeira Nossa Senhora da Palma, desde a criação da freguesia a 8 de maio de 1758. Em 1824, durante a adesão de Baturité ao movimento revolucionário conhecido por Confederação do Equador, a Matriz virou barricada, por ser o maior prédio do lugar. Um dos chefes do movimento, Tristão Gonçalves enviou 180 barris de pólvora, 220 carros de granadeiros, 3 barris de chumbo, um quintal de ferro e uma roda de aço, ficando toda essa carga guardada na Igreja Matriz, em cuja porta estavam sentinelas armadas. A igreja dispõe de duas naves, sete altares, três sinos e um grande relógio público. Comporta até 3 mil pessoas. No seu interior há ilustrações de cenas bíblicas em pintura a óleo, em estilo clássico, executadas por artistas da região. Hoje, a Matriz, encontra-se bastante modificada no seu interior. As reformas não respeitaram suas características originais, mas a população orgulha-se de seu templo bicentenário. A edificação encontra-se em lugar privilegiado, no centro da cidade, na  Praça da Matriz.

Quixeramobim – Igreja de Santo Antônio

foto Flick - Consuelo Lima

Foi fundada em 1755, pelo portuense capitão Antônio Dias Ferreira, que situando naquelas terras sertanejas, sua Fazenda de Santo Antônio do Boqueirão, logo tratou de erigir nas proximidades da sua casa, em 1730, uma pequena capela sob invocação de Santo Antônio de Lisboa ou Pádua. Vinte e cinco anos mais tarde, a capelinha arruinada era substituída pela igreja que seria a matriz da futura cidade, construída pelo mesmo Antônio Dias Ferreira, homem devoto, solteiro e dono de grande fortuna. Mas não teve o fundador da fazenda Boqueirão, e da Igreja de Santo Antônio, a ventura de ver esse templo elevado à categoria de matriz, a 15 de novembro de 1755. Falecera um ano antes, deixando as obras por terminar. Estas somente vieram a termo no ano de 1770, quando já criada a freguesia sob a direção do capitão João Francisco Vieira. Com suas duas torres e o frontispício neoclássico, a atual matriz de Quixeramobim conserva a estrutura fundamental da construção barroca do século XVIII, quando tinha uma única torre e o seu frontão ascendia em curvas simétricas. Mudou bastante sua forma; mas a alma do templo quase três vezes centenário continuou a mesma. 


A Capitania do Ceará não conheceu conventos ou instalações similares, que representaram centros valiosos de difusão da arte barroca no Brasil. O fato, aliado à pobreza da terra, justifica a ausência de obras realmente barrocas no Ceará. A Companhia de Jesus, a única ordem religiosa a se estabelecer arquitetonicamente no Ceará, permaneceu por tempo relativamente curto, com ação reduzida a conjunto missioneiros marcados por arquitetura efêmera. Como obra de vulto dos jesuítas, restaram apenas a já mencionada Igreja da Senhora de Assunção, em Viçosa do Ceará, praticamente refeita no século XIX, e as ruínas de um hospício em Aquiraz, fundado em 1717 e demolido em 1854, por ordem dos bispos de Olinda.   


Fontes:
Arquitetura no Ceará, o século XIX e algumas antecedências de José Liberal de Castro – Revista do Instituto do Ceará – 2014
À Margem da História do Ceará, de Gustavo Barroso - Imprensa Universitária do Ceará - 1962
fotos IPHAN e IBGE