Nertan Macedo
Esta é a história de um
pacto de coronéis sertanejos, celebrados no Juazeiro, do Padre Cícero, no ano longínquo
de 1911. O assunto é puxado a rosário, rifle e punhal, temperos de quem gosta e
se dispõe a saborear esses componentes da saga nordestina.
Há muitos anos, governava o Ceará um poderoso chefe da oligarquia local, Antônio Pinto Nogueira Accioly, eleito senador nos últimos dias da Monarquia. Com o súbito advento da república no Brasil, o velho Accioly não chegou a ser empossado. Mas, como astuto cacique provinciano, ele esperou pacientemente, que fossem amainadas as paixões dos primeiros tempos republicanos, para novamente se apoderar das rédeas do situacionismo no Estado.
Nogueira Accioly, no centro, de cartola e camisa clara, em visita ao Rio de Janeiro, ao lado de correligionários e familiares - 1910
Governando-o longamente,
ora sentado ele próprio na cadeira do príncipe, como chefe do executivo, ora
através de prepostos por ele indicados, graças ao apoio de um bem montado
sistema composto de chefes sertanejos, amigos e parentes caudilhescos.
Mas, como diz o velho
ditado, não há bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe. A demorada
oligarquia dos Accioly terminou por cansar o povo e a paisagem do Ceará. De resto,
em todas as capitais do país, onde esses chefões prosperavam, o
descontentamento e a revolta começaram a dar seus primeiros sinais. E onde
havia maior liberdade de imprensa e muita surra em jornalistas desabusados, a
virada começou a acontecer.
O Governo Federal, a quem
não se pode negar certo faro nos momentos de exaustão popular, tomou afinal uma
decisão: abandonar momentaneamente os chefões oligarcas à fúria da população.
Assim, os terríveis coronéis do sertão, sentindo enfraquecer o apoio do poder
central, encolheram-se e adocicaram-se. Mas o Dr. Accioly não era homem de
amolecimentos e teve de ser deposto à bala pelos revoltosos de Fortaleza.
Escapando ao tiroteio,
retirou-se para o Rio de Janeiro, onde passou a viver num ameno exílio, tipo
belle époque, cercado de correligionários que a ele se vieram juntar e chegando
mesmo a usufruir de alguma influência junto ao Presidente da República.
Enquanto isso os coronéis
do interior do Ceará, inspirados pelo carismático Padre Cícero, haviam feito um
pacto no sentido de manter os ameaçados feudos oligárquicos no Estado. A 14 de
julho de 1912, em substituição ao deposto Accioly, assume o governo, o Coronel
do Exército Marcos Franco Rabelo, homem culto, de convicções democráticas. Foi recebido
com entusiasmo pela população de Fortaleza, que logo o batizou de libertador.
Tornou-se em pouco tempo muito estimado na capital.
manifestação popular pela posse do coronel Franco Rabelo, vendo-se a Rua General Sampaio em frente ao prédio do Tiro de Guerra - 1912
Mas o coronel Franco
Rabelo, inspirado nos princípios de Liberdade, Igualdade e Fraternidade,
exagerou na sua campanha pelo aperfeiçoamento democrático no interior do
Estado. Enquanto em Fortaleza o povo cada vez mais se entusiasmava com o
Libertador Franco Rabelo, os coronéis, acuados no sertão, rilhavam os dentes,
instigados pelo Padre Cícero.
Franco Rabelo decide agir
duramente no interior. Manda seus soldados desarmar e prender cangaceiros. Pela
primeira vez alguns chefes locais, ricos e cheios de prestigio, foram
processados e compareceram a júri. Os coronéis inquietos, organizaram nos bastidores,
um pequeno mas decidido núcleo de oposição ao bravo coronel, com fumaças de
governante civilizado.
em 1912 foi lançada uma nova marca de cigarros, Libertador, com a imagem do governador Franco Rabelo.
Acontece, porém, que
Franco Rabelo escorrega numa casca de banana. Recusa apoio ao General Pinheiro
Machado, candidato do próprio Presidente da República ao Palácio do Catete. E
nessa época, o Presidente Hermes da Fonseca diz, abertamente, a um grupo de
parlamentares: para o Franco Rabelo eu tenho muito pau, de agora em diante!
A esta altura dos
acontecimentos, o ágil Padre Cícero, acolitado pelo médico e caudilho Floro
Bartolomeu – seu primeiro ministro da caatinga – e mais os coronéis signatários
do pacto de 1911, organizam um temível exército de cangaceiros, com armas
contrabandeadas e – pasmem – apoio federal, para marchar sobre Fortaleza à
maneira dos invasores visigodos.
Padre Cícero, ao lado de amigos e correligionários.
No Rio, em vão, o senador
Rui Barbosa ataca o Padre Cícero, comparando-o a Antônio Conselheiro, e chamando-o
de caudilho tonsurado. Os cangaceiros do Padre e dos Coronéis amotinados nem
sabem quem é Rui Barbosa e já passeiam, ferozes, pelas ruas de Fortaleza,
armados de rifles e punhais – sem esquecer seus rosários, pendurados no pescoço
– provocando verdadeiro terror na população. E no meio dessa turba, incrível
como pareça, circulavam aventureiros estrangeiros, fantasiados de jagunços
nordestinos.
Componentes do exército de Padre Cícero
Há uma narrativa de Rodolfo Teófilo que diz bem dessa multinacional revolucionária: “A Fortaleza chegaram um alemão, dois italianos, alguns turcos e árabes e um uruguaio, o célebre Dom César, um perito em arrombamentos de cofres”.
Era o Exército Popular do
Padre Cicero. Todo o interior do Estado já estava nas mãos da jagunçada do
patriarca. Arma-se ainda o povo da capital para defender seu governador. Os marítimos
vão ao palácio e juram morrer pelo coronel. Nada assegura mais a legalidade.
Franco Rabelo está perdido e sitiado por sertanejos barbudos, bandoleiros que
lutam pelo Padre Cícero sob a proteção de Nossa Senhora das Dores.
O epílogo é digno de um
romance de Jorge Amado ou Gabriel Garcia Marquez. Franco Rabelo abandona o
Palácio do Governo, fardado, sob intensa aclamação do povo da capital. Dispensa,
no entanto, a espada que deveria carregar à cinta. Prefere levar na mão um
exemplar da Constituição Brasileira, um exemplar anotado pelo erudito João
Barbalho.
Foi-se para sempre o Libertador Franco Rabelo. Ao que tudo indica, não conhecia o Ceará. Nem o Brasil.
Crônica de Nertan Macedo, publicada em jornal de Brasilia.
fotos: arquivo Nirez, livro Memórias do Comércio e jornal O Estado.
Foi-se para sempre o Libertador Franco Rabelo. Ao que tudo indica, não conhecia o Ceará. Nem o Brasil.
Crônica de Nertan Macedo, publicada em jornal de Brasilia.
fotos: arquivo Nirez, livro Memórias do Comércio e jornal O Estado.
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