sábado, 13 de julho de 2024

o Riacho Pajeú e a Lagoa do Garrote

 A capital do Ceará nasceu em fins do século XVII, início do século XVIII à sombra dos muros do forte português fundado pelos holandeses, que defendia o grande maceió ou pocinho, formado na embocadura do riacho Pajeú. Os holandeses chamavam o riacho de Marajatiba e a fortaleza de Schoonemborch. Em memória desse pocinho, se chamava Beco do Maceió o prolongamento da antiga Rua do Chafariz, atual José Avelino.

Avenida Alberto Nepomuceno, por onde corria o riacho Pajeú

Entre as duas colinas em que se erguia a fortificação, corria o Pajeú, que vinha das matas da aldeota, divagando ao sabor do relevo. A cidade surgiu numa ala de pequenas casas perpendiculares à parte de trás do forte, a Rua do Quartel. Depois formou uma praça, a da Sé, localizada numa volta do riacho e se estendeu pelo seu tortuoso vale, acima e abaixo, formando a Rua Direita, que foi rua de Baixo, Conde D’Eu, e Sena Madureira. Mais tarde teve um trecho alargado, chamado de Alberto Nepomuceno.

Por esse tempo, dois córregos cortavam as colinas, cujo ponto culminante ficava na antiga Rua Formosa atual Barão do Rio Branco, onde se erguia o sobrado do Conselheiro Rodrigues Junior e hoje existe o Edifício Diogo. O primeiro desses córregos, vindo da parte norte da antiga Lagoinha, na avenida Tristão Gonçalves, fluía pelas ruas Senador Pompeu, Barão do Rio Branco,  Major Facundo e Floriano Peixoto, entre a travessa das Hortas, depois Senador Alencar e a Rua das Flores, atual Castro e Silva.

Praça da Lagoinha, já sem a lagoa que já havia sido aterrada

Justamente na sua passagem pela Rua Major Facundo, o negociante Pacheco construiu um grande sobrado, por volta de 1845 a 1847. Depois, empobrecido, suicidou-se em Paris. Depois, pertenceu ao Barão de Aquiraz. Esse imóvel foi vendido ao coronel José Gentil que o demoliu. Em frente a esse sobrado, ficavam as cocheiras e o quintal da residência do Dr. Rufino de Alencar, que dava para a Rua Floriano Peixoto. Descendo por esse quintal via-se a marca da continuação do leito. Esse ribeiro ia desaguar no Pajeú, na parte meridional da atual Praça da Sé.

Documentava o curso do segundo córrego o escoamento das águas pluviais no trecho da rua Barão do Rio Branco, além do sobrado do conselheiro Rodrigues Junior. Vinha do lado meridional da lagoinha, cruzava as ruas 24 de Maio, General Sampaio e Senador Pompeu, descia pela Pedro I e, na Major Facundo, na quadra que antecede a praça do Carmo, entrava por um bueiro no quintal da antiga residência do dr. Gil Amora, na rua Floriano Peixoto, e das residências da rua da Assunção, ajudado por uma nascente ali existente, ia formar a lagoa do Garrote, de onde sangrava para o Pajeú.

Lagoa do Garrote, antes da criação do parque 

Assim, esse curso d’água que foi vital para o surgimento da cidade, devia seu maior volume de águas ao tributo de duas lagoas, a Lagoinha e a do Garrote. Formavam-no sob os pés de cajueiros e jatobás do Outeiro e da Aldeota, vários ribeiros e as águas que corriam dos alagadiços e baixadas paralelos ao antigo calçamento de Messejana, atual avenida Visconde do Rio Branco.

Perto da lagoa do Garrote, e separado pelo calçamento de Messejana, o Pajeú foi represado num açude de alvenaria de tijolos com comportas, construído na seca de 1845, pelo presidente José Martiniano de Alencar, e restaurado mais tarde pelo Dr José Júlio de Albuquerque Barros, Barão de Sobral.

Dessa obra, que existiu até 1920, não existe mais nenhum vestígio. Por sua vez a Lagoa do Garrote também foi cercada para se tornar o lago central do jardim público que existia no local, no governo do coronel Luís Antônio Ferraz, com base em projeto do engenheiro Romualdo de Barros.

Parque da Liberdade/Cidade da Criança onde funcionou um jardim de infância 
 
Há duas versões para o nome Garrote, dado à lagoa, e por extensão, durante certo tempo, ao bairro compreendido entre o Pajeú e a Rua da Assunção, a praça do Coração de Jesus, e a dos Voluntários. Uma das versões é a seguinte:

Perto da praça, na Rua do Cajueiro, atual rua Coronel Bezerril, ficavam os açougues da cidade. A área era semideserta e cheia de mato, o gado era abatido debaixo das árvores. Havia pequenos currais, onde o gado ficava confinado. Certa vez um garrote destinado ao abate fugiu de um desses cercados e se perdeu nos matagais das proximidades. Durante um tempo foi perseguido sem que ninguém conseguisse capturá-lo, apesar das batidas e da espera a beira da lagoa. Um dia, o laçaram e o mataram. Desse episódio veio o nome da lagoa. A outra versão é de que ali era o local de descanso dos comboieiros que, que conduziam gado e outros produtos pelas estradas do Ceará.


Extraído do livro: À Margem da História do Ceará/Gustavo Barroso/Imprensa Universitária do Ceará/Fortaleza:1962/publicação FortalezaemFotosFotos do Arquivo Nirez 


quinta-feira, 4 de julho de 2024

O Bispo de Sobral: pela moral e os bons costumes

centro de Sobral (imagem internet)


A edição do jornal "O Correio", do dia 9 de outubro de 1919, inicia uma severa campanha pela moralidade em Sobral, protestando contra a prostituição na cidade, pedindo “saneamento radical contra o meretrício”, o que resulta em grande polêmica com o juiz Clovodeu Arruda, de ponto de vista bem mais flexível no assunto. O juiz via as prostitutas, a maioria oriundas de famílias muito pobres, como válvulas de escape da sociedade, pela proteção que ofereciam às moças ricas, menos assediadas pelos noivos e namorados, uma vez que eram bem atendidos na zona.

O jornal ainda denuncia os abusos cometidos por moças indecentes, danças provocantes como tango e o foxtrote, filmes que estimulam o lenocínio e o adultério, revistas e romances obscenos. Chama a atenção para a inércia das autoridades em punir os responsáveis por tais divulgações, e ignorar os endereços das decaídas, presentes em quase todas as travessas da cidade.

O jornal culpa a tecnologia a serviço do pecado, e responsabiliza “esses cobiçados automóveis, as tantas casas de pasto, lanternas elétricas que permitem a alguns galgar muros e telhados pelas misérias que nos envergonham e aviltam”. Ressaltava que senhoras e moças de mangas curtas ou vestidos decotados não deveriam ir às igrejas, receber sacramentos ou amadrinhar inocentes, bem como o uso de saias evasês e cabelos à la home.  

A campanha contava com o apoio do próprio bispo Dom José, que em artigo publicado no dia 22 de janeiro, dirige suas críticas aos hábitos das fiéis: “na igreja, a moça sobralense é só e toda de Deus; se por acaso lhe acode ao pensamento  a imagem do seu preferido, é só e para entrega-lo a mais e mais aos bons cuidados da Previdência Divina.”

Do outro lado, Deolindo Barreto, que durante muito tempo pusera seu jornal "A Lucta", a serviço do bispo, já se desentendera com ele por causa da campanha eleitoral. Por isso, dá vazão a seu espírito galhofeiro na matéria “JB pede noiva”

“tendo os virtuosos diretores da Igreja nesta cidade proibido as senhoritas de irem aos bailes, teatro, futebol, avenida e que os homens nos templos olhem para as mesmas...”

Apesar do olhar atento da igreja, o povo se divertia para valer, fosse no Grêmio ou  no Clube dos Democratas, nos passeios de bonde da estrada de Ferro até a Avenida da Cruz das Almas, e até em canoas, quando o Acaraú invadia a cidade, apesar do medo do inferno, e da vigilância do bispo, que ameaçava os pecadores. Inclusive porque, nem todos os padres pareciam concordar com tais crenças, e sempre apareciam alguns arranjos discretos, onde nasciam "sobrinhos", que mesmo não sendo oficialmente reconhecidos, eram assistidos financeiramente pela vida afora.

E havia muitos casos, uns escondidos, outros de domínio público que caíam na boca do povo e desautorizava a rigidez moral do bispo. Havia o caso do padre José Palhano, que tinha fama de conquistador e era acusado de receber a visita de amigas, altas horas da noite. A reputação do padre não chegou a ser afetada, nem mesmo depois da manchete do jornal "Diário do Povo", de Jáder de Carvalho, apontando o padre como protagonista de animados encontros amorosos em apartamento do Excelsior Hotel em Fortaleza. Muito menos pela agressão praticada contra um rapaz da sociedade, que queria namorar uma moça por quem o padre nutria uma paixão.

Ficou na lembrança de muitos a história do rapto de uma moça pelo então vigário de Coreaú. Os irmãos dela perseguiram o casal e testemunhas descreveram a figura do padre em fuga, "a batina negra esvoaçando ao vento, a cavalo, levando a noiva na garupa"; de repente estaca, no meio da estrada, saca o revolver e corre para fugir dos tiros desferidos pelos futuros cunhados.

Houve ainda o caso da diretora da Pia União das Filhas de Maria, moça de virtudes tão reconhecidas que, por autorização do bispo, mantinha em sua casa um gabinete espiritual para dar consultas gratuitas sobre assuntos religiosos. Era tamanho o respeito que desfrutava, que uma vez recebeu o encargo de preparar um jovem aspirante a seminarista, rapaz bronco de espírito, mas de bela compleição física. Em meio às aulas de religião, a carne falou mais alto. E a beata ao invés de colocar o jovem cristão nos assuntos divinos, encaminhou-o para sua cama. Casaram-se às pressas.

Alheio aos fatos, o bispo fechado em seus conceitos de céu/inferno, continuava firme contra a luxúria de seus fiéis. Homens não podiam entrar no Colégio Sant’Ana, a não ser padres ou professores idosos. As integrantes da irmandade “Filhas de Maria” sofriam ao serem obrigadas a vestirem roupas que lhes cobriam o corpo todo, naquelas altas temperaturas, sob o sol ardente de Sobral. O vestido era de mangas compridas e as meias iam até os joelhos; tinham ainda de usar combinação que cobrisse até três quartos do braço. Além disso não podiam frequentar nem o sereno das festas.


Santa Casa de Sobral (imagem blog Sobral na História)

Colégio Sant'Ana (pinterest)


As senhoritas da sociedade encontraram uma saída para driblar as exigentes normas da igreja: inventaram umas mangas removíveis que cobriam os braços, apenas quando estavam na igreja. Ao saírem se descobriam, fugindo do calor insuportável.

Conta-se que Dom José resistiu bravamente à instalação do Rotary e do Lions Clube. Quando finalmente concordou que o Lions fosse fundado na cidade, estava já bem idoso. Recebeu uma comitiva formada por dirigentes da entidade e foi convidado a assistir à primeira reunião. A certa altura, para lisonjeá-lo, um dos visitantes disse que o bispo mandava na cidade. ao que Dom José respondeu 

– mando nada, quem manda é a Chica Agostinha. Fecho o cabaré dela na quarta e ela reabre no sábado.

 


Por mais de 50 anos Dom José – José Tupinambá da Frota  (1882 – 1959) – moldou Sobral à sua imagem e semelhança. Num extremo da cidade, edificou em dez anos de luta, a Santa Casa de Misericórdia, o melhor hospital da região; no outro fundou o Seminário, cujas acomodações abrigam a Universidade do Vale do Acaraú; montou o Colégio Sobralense para rapazes. Para viabilizar a Colégio Sant’Ana, cedeu o palácio episcopal, destinado a educação feminina, antiga residência do Senador Paula Pessoa. Instalou o Abrigo Coração de Jesus para acolher a velhice desamparada. Montou o Banco Popular de Sobral, depois BANCESA. Fundou o Correio da Semana e o Museu Diocesano.

Não contente com tudo isso, escreveu a história de Sobral. Nada passou despercebido ao gênio realizador de Dom José. Viveu e morreu se defendendo dos que lhe apontavam a ostensiva militância político-partidária.

 

Extraído do livro: Clero, Nobreza e Povo de Sobral, de Lustosa da Costa. Rio – São Paulo – Fortaleza: ABC Editora, 2004.     

terça-feira, 2 de julho de 2024

O Forte Holandês

 

O comandante holandês Mathias Beck, tendo desembarcado na enseada do Mucuripe, decidiu estabelecer-se à margem esquerda de um riacho, que alguns nomeavam de Marajaitiba, outros chamavam de Pajeú, ali construindo um forte que chamou de Schoonenborch, em homenagem ao então governador de Pernambuco. O desenho do forte coube ao engenheiro Ricardo Caar, que tendo examinado as condições do forte levantado na Barra do Ceará, optou pela construção de um novo, em novo local, levando em conta que, em caso de cerco, o riacho próximo asseguraria o suprimento de água, o que não acontecia no forte da Barra do Ceará, que, ficando a alguma distância do rio, seria facilmente interceptável em caso de ataque.


 Forte de São Sebastião. Fonte: Montanus, 1671

A segunda ocupação holandesa no Ceará durou cinco anos, retirando-se em os invasores em 1° de junho de 1654, dando cumprimento ao tratado de paz celebrado entre Portugal e Holanda. Antes, o comandante Matias Beck fez a entrega do Schoonenborch ao capitão português Álvaro de Azevedo Barreto, no dia 20 de maio daquele ano.


planta do forte Schoonenborch depois Nossa Senhora da Assunção (imagem Internet)

O forte foi aproveitado pelos portugueses apenas com a modificação do nome e algumas obras de reparo, passando a ter o patrocínio de Nossa Senhora da Assunção. A nomeação do comandante Álvaro de Azevedo Barreto, fora confirmada por Ordem Régia de 23 de novembro de 1654, mas, em 13 de setembro do ano seguinte, o rei Dom João IV expediu patente a Domingos de Sá Barbosa para capitão da Fortaleza do Ceará, de onde se presume que tenha sido específica a nomeação de seu antecessor, restringindo-se a executar o tratado de paz com a Holanda, ao recebimento do forte Schoonenborch.

Depois o forte passou pelo comando de diversos capitães. Por essa época, os direitos sobre a Capitania do Ceará foram reclamados por João de Melo Gusmão, que se prontificou a povoá-la, e o rei Dom Afonso IV o nomeou para comandar o forte em 1660. Pode assumir o posto somente depois de três anos, e faleceu logo depois. Tendo sido o primeiro a trazer sua família, composta de mulher e três filhas para o Ceará, provavelmente com o propósito de aqui permanecer.

Para suceder ao capitão falecido, foi nomeado João Tavares de Almeida, que reconstruiu o forte, que se encontrava quase que em ruínas, atribuída à inexistência de comandante durante alguns anos; exerceu o cargo duas vezes , antes e depois de Jorge Correia da Silva, a quem coube combater , em princípios de 1672, os índios Paiacus.

Com a vacância devido ao falecimento de João Tavares de Almeida, o forte sofreu grandes avarias, sendo reedificado por Bento Correia de Figueiredo, comandante nomeado pelo governador e capitão-general de Pernambuco, mas preterido na escolha real, pelo homônimo Bento de Macedo de Faria, sobre quem recairiam acusações de conivência com contrabandistas holandeses, e por Sebastião de Sá, , este aliás, anteriormente, porém outra vez investido no comando, coube reconstruir o forte do Pajeú, inclusive a ermida.

Em seguida exerceu o comando Tomás Cabral de Olival, de cuja passagem pelo Ceará, pouco ou nada existe a assinalar. Merecendo, no entanto, maior relevância que Pedro Lelou, nomeado após ele, mas impedido de tomar posse, por estar sendo processado. Interinamente, Fernão Carrilho se saiu muito bem, vencendo os Paiacus e aldeando Anacés, e Jaguaribaras nas proximidades do forte.

Depois de empossado, Pedro Lelou não tardou que os moradores representassem contra ele, por excessos cometidos, e foi repreendido pelo próprio rei por ter criado postos no distrito do Ceará contra as ordens existentes. O maior serviço prestado por esse governante, foi ter escrito ao monarca em 1696 sugerindo a criação da primeira vila em território cearense.

Comandaram ainda o forte de Nossa Senhora da Assunção, em fins do século XVII, Fernão Carrilho e Francisco Gil Ribeiro. Os holandeses ao preferirem localizar o forte à margem do Marajaig, sobre o barranco ali existente, anteciparam-se aos portugueses no cumprimento de uma recomendação que o governador do Maranhão, Francisco Coelho fizera em carta de 6 de fevereiro de 1627, ao rei Felipe IV.


Extraído do livro “A Capital do Ceará”, de Geraldo da Silva Nobre.