Beato José Lourenço (acervo do Museu do Ceará em foto de Fátima Garcia)
Aos vinte anos de idade chegava a Juazeiro o paraibano José
Lourenço Gomes da Silva, em busca de orientação do Padre Cícero, então no auge
dos acontecimentos milagrosos. O padre recomendou a José Lourenço que fizesse
penitência durante um determinado período e voltasse à sua presença.
No fim do
tempo marcado, Padre Cícero dizendo ter para ele uma missão, mandou que se estabelecesse no Sítio Baixa Danta, na
qualidade de rendeiro. José Lourenço transformou com trabalho diligente e
planejado, uma terra árida numa das propriedades mais férteis da região.
Lavrador
primoroso, nas cerimônias religiosas vestia um hábito de beato, carregando às
costas uma cruz, conduzindo penitentes ou simples devotos em procissões.
Solteiro, dividia o produto do seu trabalho com os mais necessitados. O padre
mandava para Baixa Danta os romeiros mais desvalidos, os fugitivos de
perseguições, os que precisavam ser reeducados no trabalho.
Beato José Lourenço e a Santa Cruz do Deserto em 1937
(foto do site http://www.onordeste.com)
Personalidade
marcante pelo número de adeptos que o seguia em todas as decisões, despertava entre a população regional, muito
respeito ou muita inveja. Era da total confiança do Padre Cícero que o usava
como mensageiro em missões que requeressem sigilo, além de lhe confiar o
trabalho de doutrinação de muitos romeiros. Apesar de analfabeto é lembrado por
seus seguidores como um grande conselheiro, alguém que nunca errou uma
orientação dada a seu povo.
Na década de 1920, o Padre Cícero entregou a seus
cuidados um touro que recebeu de presente. José Lourenço que dispensava um carinho
especial aos animais, desde seu cavalo até o vasto criatório de aves domésticas
e pássaros de todas as plumagens, recebeu com redobrado cuidado o boi
“mansinho”, que logo se tornou um belo espécime da raça guzerá. Muitos
criadores pediam emprestado o touro para cruzar em suas fazendas. O povo do
beato tratava com esmero o “boi do meu padrinho”.
Em pouco tempo os jornais denunciavam a
crença no Boi Ápis que se desenvolvia no Juazeiro. Os padres, do púlpito,
pediam às autoridades para combater a “nefanda heresia”, que se estabelecera
entre os seguidores de José Lourenço.
José Lourenço e alguns de seus adeptos (foto do site O Nordeste.Com)
Para acabar com a campanha de difamação, mesmo convencido da
inocência do beato, Floro Bartolomeu mandou prender José
Lourenço, matando o boi e tentando obriga-lo a comer de sua carne. Seus
seguidores relataram que o beato resistiu dezoito dias na prisão, sem comer, ao
final dos quais o Padre Cícero foi tirá-lo e mandou-o de volta a Baixa Danta.
Após a morte de Floro Bartolomeu, em 1927, o proprietário da
Baixa Danta vendeu o sítio e José Lourenço perdeu todo o trabalho e os
beneficiamentos feitos na terra. Padre Cícero então o desloca com toda a sua
gente, longe dos olhos invejosos, para um grande terreno de sua propriedade, na
Serra do Araripe – a Fazenda Caldeirão.
seguidores do Beato José Lourenço no Sítio Caldeirão. O massacre promovido pela polícia vitimou adultos e crianças (foto do quadro pertencente ao acervo do Museu do Ceará, por Fátima Garcia)
No Caldeirão a obra de José Lourenço toma, em bem menores
proporções demográficas, a dimensão social da comunidade religiosa de Antônio
Conselheiro. Em pouco tempo, o Caldeirão torna-se fornecedor de mão-de-obra
para as empresa agrícolas da vizinhança, além da fértil propriedade com engenho
de rapadura, extensa plantação de cana, grande produção de gêneros
alimentícios e algodão, além de diversificado criatório de gado vacum, caprino,
ovino e suíno. Era o rico manancial de fartura a que seus sobreviventes se
referem como ao “mundo de Deus que o pecado de Satanás fez desaparecer”.
Por testamento, Padre Cícero deixou a Fazenda Caldeirão para os padres salesianos. A partir da morte do padre, a Diocese do Crato tenta impugnar seu testamento com o objetivo de se apossar dos bens deixados por ele. Desenvolveu-se acirrada polêmica com o bispo advogando o direito de confisco desses bens para o patrimônio do bispado.
A justiça
brasileira fez cumprir as disposições testamentárias, entregando o espólio aos
herdeiros nomeados, que assumiram o compromisso de respeitar a vontade do
Padre, no sentido de construir um colégio em Juazeiro, proteger as romarias, e
posteriormente, trazer a ordem de São Francisco para se estabelecer na cidade.
Tomando posse de todas as propriedades que herdaram em 1936, os Salesianos,
embora José Lourenço lhes pagasse fielmente a renda da terra e lhes trouxessem
cargas e mais cargas de produtos do Caldeirão, deliberaram o despejo do beato e
sua gente. Inicia-se então uma campanha de difamação contra ele, que era
acusado de promiscuidade sexual, práticas diabólicas, dentre outras acusações.
Dizia-se até que “aquilo ia ser igual a Canudos”.
Moradores do Sítio Caldeirão
(quadro do acervo do Museu do Ceará em foto de Fátima Garcia)
No dia 11 de novembro desse ano, o capitão do exército
Cordeiro Neto, Secretário de Segurança do Ceará, fez uma primeira incursão à
fazenda. O pretexto fora a informação de que José Lourenço havia recebido três
caixas de armamentos e munições, que deveriam ser entregues ao governo. O beato
mostra haver nas caixas apenas algumas imagens de santos. Não convencido dos
propósitos pacifistas de José Lourenço, o secretário deixa no Caldeirão o
tenente Germano, que lá permanece por um mês. Segundo os sobreviventes, ele
ficou para fazer um reconhecimento da região e dos hábitos do povo, bem como
arrolar todos os bens existentes na fazenda, que mais tarde seriam roubados
pelas tropas.
Em 1937 o Caldeirão é atacado pelo oficial de Polícia José Bezerra. Diante da ferocidade do ataque-surpresa, o povo do Caldeirão reage, travando-se violento combate no dia 10 de maio, onde morreram José Bezerra, o filho, o genro e um cabo. Do lado do beato morreram quatro seguidores, entre eles Custódio Pereira Barros, valente romeiro paraibano, que vendo o beato em perigo, organizara a resistência, pagando com a vida sua fidelidade. Nesse embate repete-se a prática de cortar as cabeças dos inimigos mortos.
ruínas da casa onde morou o beato José Lourenço (foto do Diário do Nordeste)
Fugindo para a serra, o beato já se dirigia com sua gente
para o Estado de Pernambuco, quando foram alcançados pelas tropas, que
desfecharam um ataque arrasador por terra e por ar, matando, e prendendo muita
gente, no afã de prender José Lourenço
que se evadira. Os prisioneiros, apesar de torturados, não revelaram o
paradeiro do beato. De 1937 a 1940 o governo persegue sistematicamente os ex-moradores
do Caldeirão, que se dispersam por várias localidades.
Com algumas pessoas, José
Lourenço se estabelece na Fazenda União em Exu, Pernambuco, enquanto os
policiais saqueavam o Caldeirão, incendiando o que não podia ser levado, e vendendo
todos os bens móveis.
das várias construções edificadas no Sítio Caldeirão para abrigar os camponeses
participantes do movimento, restam a pequena capela de Santo Inácio de
Loyola, relativamente conservada, e poucas casas em ruínas. Quanto à
árida paisagem de entorno, esta permaneceu praticamente inalterada. (Foto Secult)
Com o fim das perseguições, em 1944, o beato tenta através
do advogado Dr. Antônio de Alencar Araripe, uma ação judicial contra o Estado
do Ceará, por agressão e furtos, solicitando uma indenização. O procurador do
Estado declara a prescrição do seu direito de agir contra o Estado.
No dia 12 de fevereiro de 1946, José Lourenço morre de morte
natural na Fazenda União. Seus seguidores atravessando a serra carregam seu
corpo por treze léguas. Caminham por toda a noite e, ao raiar do dia chegam a
Juazeiro, onde o beato é velado pelos romeiros. José Lourenço foi enterrado no Cemitério do Socorro, bem ao lado da igreja onde se encontra o corpo de Padre
Cícero.
fonte:
O Movimento Religioso de Juazeiro do Norte. Padre Cícero e o Fenômeno do Caldeirão.
de Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros
(em História do Ceará, Coordenação de Simone de Souza)
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