quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Padre Palhano, o Prefeito de Sobral

 José Palhano de Saboia era apenas um seminarista, quando caiu nas boas graças do bispo Dom José Tupinambá da Frota, primeiro bispo de Sobral, que o considerava como seu filho adotivo. O seminarista era um sujeito carismático, desportista, piloto de avião e moto, indisciplinado, inquieto e extremamente popular entre a população de Sobral. Foi ordenado por Dom José depois de ter sido expulso do Seminário da Prainha, por viajar para Sobral todo fim de semana, sem licença dos superiores. Depois foi estudar em Roma, onde pouco demorou na Universidade Gregoriana, retornando a Sobral. Muito inteligente e inquieto, Palhano não gostava de estudar.

Padre Palhano

Passou a trabalhar com Dom José, no Palácio Episcopal. Quando teve seu avião, levava o bispo a acompanhá-lo nas suas piruetas aéreas. Atuando como tesoureiro das riquezas da Diocese, era ele quem distribuía as honrarias e cargos da igreja. Usava sua camionete para ajudar aos mais pobres, como transportar uma grávida para a maternidade, ou um doente de volta para casa.

Por isso, não foi surpresa para ninguém quando ingressou na cena política, depois de indispor o bispo Dom José com um velho aliado, o cacique político da região, Chico Monte. Candidatou-se a prefeitura de Sobral em 1958, numa ruidosa campanha que repercutiu no Estado e no País inteiro, onde envolveu o próprio bispo, que viveu o vexame de passar por uma inspeção do arcebispo metropolitano, Dom Antônio de Almeida Lustosa, instrumentado pelas boas relações do então Ministro do Trabalho Parsifal Barroso, genro de Chico Monte, com a alta hierarquia da Igreja Católica.

 

Bispo Dom José ao lado do seminarista José Palhano de Saboia

O bispo Dom José, usado como trunfo na mesquinha campanha eleitoral – dada sua popularidade entre a população – era levado para cima e para baixo pelas ruas de Sobral, surdo, quase cego e senil, para ajudar o pupilo, que provocava pessoalmente o adversário Chico Monte. O veterano político tentou responder com a candidatura do monsenhor José Gerardo Ferreira Gomes. O bispo proibiu a disputa, sob pretexto de que não ia permitir a luta de entre dois padres.


vista aérea do Seminário Diocesano, inaugurado por Dom José em 1925. Funcionou até 1967

Padre Palhano venceu a eleição. Dom José ainda pode testemunhar o feito, presidindo o banquete em comemoração ao novo prefeito. Logo depois, morreu. A gestão de Palhano à frente da Prefeitura de Sobral foi cheia de percalços, devido a forte oposição de grupos políticos locais e do Governo do Estado.

Em 1962 candidatou-se ao cargo de deputado federal e na mesma época foi excomungado pelo Vaticano por haver processado na justiça comum o bispo Dom Walfrido Teixeira Vieira. Depois foi suspenso das ordens por Dom João da Mota. Na véspera da eleição, correu em Sobral um boletim apócrifo, atribuído ao secretário da Diocese, padre Sadoc, lamentando a punição ao padre Palhano, dizendo tratar-se de um grande equívoco. As cópias do boletim foram jogadas de um avião e inundou as ruas de Sobral. No ano de 1962, fundou a Rádio Tupinambá, que possuía vasta programação musical, e de onde o padre divulgava notícias bombásticas a respeito dos adversários.


Avenida Dom José, no Centro

O golpe militar de 1964 foi o fim da carreira política de Padre Palhano, cassado por Ato Institucional. Então, foi morar no Rio de Janeiro, onde se formou em Direito. Quando pode, voltou a Sobral, às suas polêmicas, aos banhos no açude do Quebra, sua paradisíaca propriedade na Serra da Meruoca.

Padre Palhano terminou seus dias aos sessenta anos sem votos, sem a sua emissora de rádio, sem a aura romântica que tanto cultivara. Seu enterro, no entanto, foi a consagração que ele teria gostado de presenciar. A cidade inteira, chorando, levou-o à sua última morada, lembrando seu carisma, sua alegria de viver, esquecendo e perdoando seus arrebatamentos e as paixões que suscitara.


Extraído do livro” Clero, Nobreza e Povo de Sobral/Lustosa da Costa. Rio-São Paulo- Fortaleza: ABC Editora,2004/publicação Fortaleza em Fotos/Imagens IBGE e Internet          


segunda-feira, 9 de setembro de 2024

A Saga dos Judeus no Ceará

 Historiadores contam que a origem de muitas famílias que vivem no Ceará, pode ser judaica. Quando os reis católicos Fernando e Isabel unificaram o Reino da Espanha em 1492, expulsaram de suas terras os judeus que viviam na Península Ibérica, denominados Sefarditas. Os judeus espanhóis fugiram para diversos países, inclusive Portugal. Neste país, os judeus que desejassem permanecer, tinham de se converter ao catolicismo, através de um édito baixado pelo Rei Dom Manuel. Os judeus recém-batizados passaram a ser chamados de cristãos-novos.


família judia (imagem site da rádio universitária)

Um grande contingente desses cristãos-novos veio para o Brasil. Muitos continuaram a praticar secretamente os ritos judaicos, e não abandonaram a cultura dos antepassados, por isso sofriam discriminação. Outros absorveram totalmente o Catolicismo, mas nem assim escaparam das perseguições.

O Nordeste acolheu boa parte dos que emigraram para o Brasil, especialmente os Estados de Pernambuco e Paraíba. Um dos casos mais notórios é o de Branca Dias, nascida em Portugal, filha de pais judeus convertidos à força ao cristianismo. Branca Dias veio para o Brasil após ser denunciada em Portugal por praticar ritos judaicos,

No Brasil, Branca e seu marido, Diogo Fernandes Santiago, atuaram no ramo da cana-de-açúcar, com engenhos na região entre a Paraíba e Pernambuco. Branca formou uma família numerosa no Brasil e é considerada uma das primeiras professoras do Brasil - ela construiu uma escola para meninas e ministrava aulas de alfabetização.

Branca e Diogo Fernandes fundaram uma sinagoga em Camaragibe e lá se reuniam os criptojudeus da região. Muitas famílias cearenses são descendentes deste casal, sobretudo, comprovadamente, os provenientes de Agostinho de Holanda, um dos filhos do fundador da família, casado com uma neta de Branca Dias, Maria de Paiva.  

Após a morte de Branca Dias, o Brasil recebeu a primeira visita da Inquisição e a perseguição voltou a cair sobre sua família. Várias de suas filhas foram acusadas de “judaizar” condenadas a penas de prisão, multa e penitências espirituais. Após esta última devassa, os membros da família de Branca Dias se separaram e dividiram-se pelo Brasil.


A Inquisição Portuguesa ou Tribunal do Santo Ofício, foi uma instituição da Igreja Católica que atuou em Portugal a partir de 1536. Tinha como objetivo combater desvios da fé católica, em especial as práticas religiosas dos judeus recém-convertidos ao cristianismo e dos seus descendentes.


Sabe-se ainda que, muitos judeus que moravam no Recife vieram para o Ceará, quando representantes do Tribunal da Santa Inquisição de Portugal visitaram Olinda em 1594. Os judeus conseguiram uma grande infiltração nesse Estado, sobretudo nos lugares próximos ao litoral, propícios à cultura de cana-de-açúcar.

O Ceará, talvez por sua pequena população, pobreza de recursos e desinteresse dos inquisidores foi deixado à margem, enquanto Pernambuco e Paraíba receberam inúmeras visitas de representantes do Santo Ofício. Contribuiu este esquecimento das terras cearenses pela Inquisição, para incrementar as transferências disfarçadas de numerosas famílias cripto-judaicas, de outros Estados do Nordeste para o Ceará. Uma família paraibana teve 29 pessoas presas pela inquisição e levadas à Portugal. Uma mulher dessa família transferiu-se para o Ceará e casou-se com um cristão-velho.

(Há menções de historiadores de que o Ceará recebeu várias visitas de inquisidores do Santo Ofício, mas estas não estavam relacionadas aos judeus ou aos seus ritos, e sim a outras infrações consideradas graves como, negação de fé, bigamia, homossexualidade, adultério e outros).    

Com a conversão forçada, em razão da perseguição, muitos trocaram de sobrenomes para esconder a origem judaica. Os antigos registros feitos pelas igrejas estão repletos de documentos sobre as migrações de famílias, com seus sobrenomes originais, típicos dos povos da raça discriminada: Fonseca, Rego, Brito, Henrique, Nunes, Mesquita, Rosa, Antunes, Pinto, etc.

Os cristãos-novos encontrados no Ceará são de segunda, terceira geração. Um dos casos mais citados é o de Josefa Maria dos Reis, nome disfarçado de uma integrante da família Fonseca Rego, filha de cristãos-novos residentes na Paraíba, que foram condenados a hábito e cárcere perpétuo em 1731. O hábito perpétuo significava que o apenado seria obrigado a usar, pelo resto da vida, uma espécie de avental amarelo, com uma estrela de David. O aparecimento em público de alguém usando esse avental, era motivo de insultos e escárnios e as vezes até do emprego de violência.

A Josefa, acima mencionada, ainda criança deixou a Paraíba e foi trazida para a Vila de Aquiraz, no Ceará. Aqui se casou com o sergipano António de Freitas Coutinho, que chegou ao posto de alcaide, um cargo administrativo relevante no Brasil colonial. Ela viveu a maior parte da vida na pequena Vila da Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção, que daria origem, mais tarde, à cidade de Fortaleza, atual capital do Ceará.

No Ceará, a perseguição antissemita seguiu os critérios de identificação que já eram usados em outros lugares. Como os cultos não eram abertos, e realizados de forma muito discreta, os denunciantes buscavam evidências para apontar a prática religiosa proibida. Para isso usavam de artimanhas, como convidar a família suspeita para almoçar, e servir carne de porco; se não comesse, era um indício; outra evidência, de acordo com os documentos, era o hábito de preparar a carne com bastante cebola e azeite – e não com banha de porco, como era costume à época, uma vez que judeus não consomem carne suina; outros foram denunciadas por se recusarem a trabalhar aos sábados (dia santificado do Judaísmo). E houve algumas denúncias por usos que fazem parte da rotina diária até hoje, como o hábito de varrer a casa da frente para trás – da porta para o quintal – um hábito de origem judaica.

As denúncias, muitas vezes, vinham de dentro da própria casa, partindo de amigos e parentes. As suspeitas eram comunicadas aos representantes diretos do tribunal, que gozavam de todo o poder e prestígio da Inquisição. Eram os “familiares”, nome dado aos civis que colaboravam com a Inquisição e agiam como espiões e denunciantes. Um dos casos mais famosos foi do militar português Antônio Borges da Fonseca, radicado em Pernambuco, que por mais de uma vez viajou à Paraíba para prender cristãos-novos por práticas religiosas. Foi recompensado com cargos políticos: foi governador da Paraíba, e seu filho Antônio José Victoriano Borges da Fonseca foi governador do Ceará, entre 1765 e 1782. A atuação de “familiares” como Borges da Fonseca formou as bases do funcionamento da Inquisição no Brasil.

Os cristãos-novos, em sua maioria integraram-se ao catolicismo e mudaram de sobrenomes para se tornarem invisíveis aos olhos de seus perseguidores.  


Fontes: Revista do Instituto do Ceará. Os Cristãos Novos na Formação da Família Cearense. Vinicius Barros Leal. 1975.    

https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2023/07/06/inquisicao-no-brasil-como-o-tribunal-do-santo-oficio-perseguiu-brasileiros-por-seculos.ghtml 


sábado, 13 de julho de 2024

o Riacho Pajeú e a Lagoa do Garrote

 A capital do Ceará nasceu em fins do século XVII, início do século XVIII à sombra dos muros do forte português fundado pelos holandeses, que defendia o grande maceió ou pocinho, formado na embocadura do riacho Pajeú. Os holandeses chamavam o riacho de Marajatiba e a fortaleza de Schoonemborch. Em memória desse pocinho, se chamava Beco do Maceió o prolongamento da antiga Rua do Chafariz, atual José Avelino.

Avenida Alberto Nepomuceno, por onde corria o riacho Pajeú

Entre as duas colinas em que se erguia a fortificação, corria o Pajeú, que vinha das matas da aldeota, divagando ao sabor do relevo. A cidade surgiu numa ala de pequenas casas perpendiculares à parte de trás do forte, a Rua do Quartel. Depois formou uma praça, a da Sé, localizada numa volta do riacho e se estendeu pelo seu tortuoso vale, acima e abaixo, formando a Rua Direita, que foi rua de Baixo, Conde D’Eu, e Sena Madureira. Mais tarde teve um trecho alargado, chamado de Alberto Nepomuceno.

Por esse tempo, dois córregos cortavam as colinas, cujo ponto culminante ficava na antiga Rua Formosa atual Barão do Rio Branco, onde se erguia o sobrado do Conselheiro Rodrigues Junior e hoje existe o Edifício Diogo. O primeiro desses córregos, vindo da parte norte da antiga Lagoinha, na avenida Tristão Gonçalves, fluía pelas ruas Senador Pompeu, Barão do Rio Branco,  Major Facundo e Floriano Peixoto, entre a travessa das Hortas, depois Senador Alencar e a Rua das Flores, atual Castro e Silva.

Praça da Lagoinha, já sem a lagoa que já havia sido aterrada

Justamente na sua passagem pela Rua Major Facundo, o negociante Pacheco construiu um grande sobrado, por volta de 1845 a 1847. Depois, empobrecido, suicidou-se em Paris. Depois, pertenceu ao Barão de Aquiraz. Esse imóvel foi vendido ao coronel José Gentil que o demoliu. Em frente a esse sobrado, ficavam as cocheiras e o quintal da residência do Dr. Rufino de Alencar, que dava para a Rua Floriano Peixoto. Descendo por esse quintal via-se a marca da continuação do leito. Esse ribeiro ia desaguar no Pajeú, na parte meridional da atual Praça da Sé.

Documentava o curso do segundo córrego o escoamento das águas pluviais no trecho da rua Barão do Rio Branco, além do sobrado do conselheiro Rodrigues Junior. Vinha do lado meridional da lagoinha, cruzava as ruas 24 de Maio, General Sampaio e Senador Pompeu, descia pela Pedro I e, na Major Facundo, na quadra que antecede a praça do Carmo, entrava por um bueiro no quintal da antiga residência do dr. Gil Amora, na rua Floriano Peixoto, e das residências da rua da Assunção, ajudado por uma nascente ali existente, ia formar a lagoa do Garrote, de onde sangrava para o Pajeú.

Lagoa do Garrote, antes da criação do parque 

Assim, esse curso d’água que foi vital para o surgimento da cidade, devia seu maior volume de águas ao tributo de duas lagoas, a Lagoinha e a do Garrote. Formavam-no sob os pés de cajueiros e jatobás do Outeiro e da Aldeota, vários ribeiros e as águas que corriam dos alagadiços e baixadas paralelos ao antigo calçamento de Messejana, atual avenida Visconde do Rio Branco.

Perto da lagoa do Garrote, e separado pelo calçamento de Messejana, o Pajeú foi represado num açude de alvenaria de tijolos com comportas, construído na seca de 1845, pelo presidente José Martiniano de Alencar, e restaurado mais tarde pelo Dr José Júlio de Albuquerque Barros, Barão de Sobral.

Dessa obra, que existiu até 1920, não existe mais nenhum vestígio. Por sua vez a Lagoa do Garrote também foi cercada para se tornar o lago central do jardim público que existia no local, no governo do coronel Luís Antônio Ferraz, com base em projeto do engenheiro Romualdo de Barros.

Parque da Liberdade/Cidade da Criança onde funcionou um jardim de infância 
 
Há duas versões para o nome Garrote, dado à lagoa, e por extensão, durante certo tempo, ao bairro compreendido entre o Pajeú e a Rua da Assunção, a praça do Coração de Jesus, e a dos Voluntários. Uma das versões é a seguinte:

Perto da praça, na Rua do Cajueiro, atual rua Coronel Bezerril, ficavam os açougues da cidade. A área era semideserta e cheia de mato, o gado era abatido debaixo das árvores. Havia pequenos currais, onde o gado ficava confinado. Certa vez um garrote destinado ao abate fugiu de um desses cercados e se perdeu nos matagais das proximidades. Durante um tempo foi perseguido sem que ninguém conseguisse capturá-lo, apesar das batidas e da espera a beira da lagoa. Um dia, o laçaram e o mataram. Desse episódio veio o nome da lagoa. A outra versão é de que ali era o local de descanso dos comboieiros que, que conduziam gado e outros produtos pelas estradas do Ceará.


Extraído do livro: À Margem da História do Ceará/Gustavo Barroso/Imprensa Universitária do Ceará/Fortaleza:1962/publicação FortalezaemFotosFotos do Arquivo Nirez 


quinta-feira, 4 de julho de 2024

O Bispo de Sobral: pela moral e os bons costumes

centro de Sobral (imagem internet)


A edição do jornal "O Correio", do dia 9 de outubro de 1919, inicia uma severa campanha pela moralidade em Sobral, protestando contra a prostituição na cidade, pedindo “saneamento radical contra o meretrício”, o que resulta em grande polêmica com o juiz Clovodeu Arruda, de ponto de vista bem mais flexível no assunto. O juiz via as prostitutas, a maioria oriundas de famílias muito pobres, como válvulas de escape da sociedade, pela proteção que ofereciam às moças ricas, menos assediadas pelos noivos e namorados, uma vez que eram bem atendidos na zona.

O jornal ainda denuncia os abusos cometidos por moças indecentes, danças provocantes como tango e o foxtrote, filmes que estimulam o lenocínio e o adultério, revistas e romances obscenos. Chama a atenção para a inércia das autoridades em punir os responsáveis por tais divulgações, e ignorar os endereços das decaídas, presentes em quase todas as travessas da cidade.

O jornal culpa a tecnologia a serviço do pecado, e responsabiliza “esses cobiçados automóveis, as tantas casas de pasto, lanternas elétricas que permitem a alguns galgar muros e telhados pelas misérias que nos envergonham e aviltam”. Ressaltava que senhoras e moças de mangas curtas ou vestidos decotados não deveriam ir às igrejas, receber sacramentos ou amadrinhar inocentes, bem como o uso de saias evasês e cabelos à la home.  

A campanha contava com o apoio do próprio bispo Dom José, que em artigo publicado no dia 22 de janeiro, dirige suas críticas aos hábitos das fiéis: “na igreja, a moça sobralense é só e toda de Deus; se por acaso lhe acode ao pensamento  a imagem do seu preferido, é só e para entrega-lo a mais e mais aos bons cuidados da Previdência Divina.”

Do outro lado, Deolindo Barreto, que durante muito tempo pusera seu jornal "A Lucta", a serviço do bispo, já se desentendera com ele por causa da campanha eleitoral. Por isso, dá vazão a seu espírito galhofeiro na matéria “JB pede noiva”

“tendo os virtuosos diretores da Igreja nesta cidade proibido as senhoritas de irem aos bailes, teatro, futebol, avenida e que os homens nos templos olhem para as mesmas...”

Apesar do olhar atento da igreja, o povo se divertia para valer, fosse no Grêmio ou  no Clube dos Democratas, nos passeios de bonde da estrada de Ferro até a Avenida da Cruz das Almas, e até em canoas, quando o Acaraú invadia a cidade, apesar do medo do inferno, e da vigilância do bispo, que ameaçava os pecadores. Inclusive porque, nem todos os padres pareciam concordar com tais crenças, e sempre apareciam alguns arranjos discretos, onde nasciam "sobrinhos", que mesmo não sendo oficialmente reconhecidos, eram assistidos financeiramente pela vida afora.

E havia muitos casos, uns escondidos, outros de domínio público que caíam na boca do povo e desautorizava a rigidez moral do bispo. Havia o caso do padre José Palhano, que tinha fama de conquistador e era acusado de receber a visita de amigas, altas horas da noite. A reputação do padre não chegou a ser afetada, nem mesmo depois da manchete do jornal "Diário do Povo", de Jáder de Carvalho, apontando o padre como protagonista de animados encontros amorosos em apartamento do Excelsior Hotel em Fortaleza. Muito menos pela agressão praticada contra um rapaz da sociedade, que queria namorar uma moça por quem o padre nutria uma paixão.

Ficou na lembrança de muitos a história do rapto de uma moça pelo então vigário de Coreaú. Os irmãos dela perseguiram o casal e testemunhas descreveram a figura do padre em fuga, "a batina negra esvoaçando ao vento, a cavalo, levando a noiva na garupa"; de repente estaca, no meio da estrada, saca o revolver e corre para fugir dos tiros desferidos pelos futuros cunhados.

Houve ainda o caso da diretora da Pia União das Filhas de Maria, moça de virtudes tão reconhecidas que, por autorização do bispo, mantinha em sua casa um gabinete espiritual para dar consultas gratuitas sobre assuntos religiosos. Era tamanho o respeito que desfrutava, que uma vez recebeu o encargo de preparar um jovem aspirante a seminarista, rapaz bronco de espírito, mas de bela compleição física. Em meio às aulas de religião, a carne falou mais alto. E a beata ao invés de colocar o jovem cristão nos assuntos divinos, encaminhou-o para sua cama. Casaram-se às pressas.

Alheio aos fatos, o bispo fechado em seus conceitos de céu/inferno, continuava firme contra a luxúria de seus fiéis. Homens não podiam entrar no Colégio Sant’Ana, a não ser padres ou professores idosos. As integrantes da irmandade “Filhas de Maria” sofriam ao serem obrigadas a vestirem roupas que lhes cobriam o corpo todo, naquelas altas temperaturas, sob o sol ardente de Sobral. O vestido era de mangas compridas e as meias iam até os joelhos; tinham ainda de usar combinação que cobrisse até três quartos do braço. Além disso não podiam frequentar nem o sereno das festas.


Santa Casa de Sobral (imagem blog Sobral na História)

Colégio Sant'Ana (pinterest)


As senhoritas da sociedade encontraram uma saída para driblar as exigentes normas da igreja: inventaram umas mangas removíveis que cobriam os braços, apenas quando estavam na igreja. Ao saírem se descobriam, fugindo do calor insuportável.

Conta-se que Dom José resistiu bravamente à instalação do Rotary e do Lions Clube. Quando finalmente concordou que o Lions fosse fundado na cidade, estava já bem idoso. Recebeu uma comitiva formada por dirigentes da entidade e foi convidado a assistir à primeira reunião. A certa altura, para lisonjeá-lo, um dos visitantes disse que o bispo mandava na cidade. ao que Dom José respondeu 

– mando nada, quem manda é a Chica Agostinha. Fecho o cabaré dela na quarta e ela reabre no sábado.

 


Por mais de 50 anos Dom José – José Tupinambá da Frota  (1882 – 1959) – moldou Sobral à sua imagem e semelhança. Num extremo da cidade, edificou em dez anos de luta, a Santa Casa de Misericórdia, o melhor hospital da região; no outro fundou o Seminário, cujas acomodações abrigam a Universidade do Vale do Acaraú; montou o Colégio Sobralense para rapazes. Para viabilizar a Colégio Sant’Ana, cedeu o palácio episcopal, destinado a educação feminina, antiga residência do Senador Paula Pessoa. Instalou o Abrigo Coração de Jesus para acolher a velhice desamparada. Montou o Banco Popular de Sobral, depois BANCESA. Fundou o Correio da Semana e o Museu Diocesano.

Não contente com tudo isso, escreveu a história de Sobral. Nada passou despercebido ao gênio realizador de Dom José. Viveu e morreu se defendendo dos que lhe apontavam a ostensiva militância político-partidária.

 

Extraído do livro: Clero, Nobreza e Povo de Sobral, de Lustosa da Costa. Rio – São Paulo – Fortaleza: ABC Editora, 2004.     

terça-feira, 2 de julho de 2024

O Forte Holandês

 

O comandante holandês Mathias Beck, tendo desembarcado na enseada do Mucuripe, decidiu estabelecer-se à margem esquerda de um riacho, que alguns nomeavam de Marajaitiba, outros chamavam de Pajeú, ali construindo um forte que chamou de Schoonenborch, em homenagem ao então governador de Pernambuco. O desenho do forte coube ao engenheiro Ricardo Caar, que tendo examinado as condições do forte levantado na Barra do Ceará, optou pela construção de um novo, em novo local, levando em conta que, em caso de cerco, o riacho próximo asseguraria o suprimento de água, o que não acontecia no forte da Barra do Ceará, que, ficando a alguma distância do rio, seria facilmente interceptável em caso de ataque.


 Forte de São Sebastião. Fonte: Montanus, 1671

A segunda ocupação holandesa no Ceará durou cinco anos, retirando-se em os invasores em 1° de junho de 1654, dando cumprimento ao tratado de paz celebrado entre Portugal e Holanda. Antes, o comandante Matias Beck fez a entrega do Schoonenborch ao capitão português Álvaro de Azevedo Barreto, no dia 20 de maio daquele ano.


planta do forte Schoonenborch depois Nossa Senhora da Assunção (imagem Internet)

O forte foi aproveitado pelos portugueses apenas com a modificação do nome e algumas obras de reparo, passando a ter o patrocínio de Nossa Senhora da Assunção. A nomeação do comandante Álvaro de Azevedo Barreto, fora confirmada por Ordem Régia de 23 de novembro de 1654, mas, em 13 de setembro do ano seguinte, o rei Dom João IV expediu patente a Domingos de Sá Barbosa para capitão da Fortaleza do Ceará, de onde se presume que tenha sido específica a nomeação de seu antecessor, restringindo-se a executar o tratado de paz com a Holanda, ao recebimento do forte Schoonenborch.

Depois o forte passou pelo comando de diversos capitães. Por essa época, os direitos sobre a Capitania do Ceará foram reclamados por João de Melo Gusmão, que se prontificou a povoá-la, e o rei Dom Afonso IV o nomeou para comandar o forte em 1660. Pode assumir o posto somente depois de três anos, e faleceu logo depois. Tendo sido o primeiro a trazer sua família, composta de mulher e três filhas para o Ceará, provavelmente com o propósito de aqui permanecer.

Para suceder ao capitão falecido, foi nomeado João Tavares de Almeida, que reconstruiu o forte, que se encontrava quase que em ruínas, atribuída à inexistência de comandante durante alguns anos; exerceu o cargo duas vezes , antes e depois de Jorge Correia da Silva, a quem coube combater , em princípios de 1672, os índios Paiacus.

Com a vacância devido ao falecimento de João Tavares de Almeida, o forte sofreu grandes avarias, sendo reedificado por Bento Correia de Figueiredo, comandante nomeado pelo governador e capitão-general de Pernambuco, mas preterido na escolha real, pelo homônimo Bento de Macedo de Faria, sobre quem recairiam acusações de conivência com contrabandistas holandeses, e por Sebastião de Sá, , este aliás, anteriormente, porém outra vez investido no comando, coube reconstruir o forte do Pajeú, inclusive a ermida.

Em seguida exerceu o comando Tomás Cabral de Olival, de cuja passagem pelo Ceará, pouco ou nada existe a assinalar. Merecendo, no entanto, maior relevância que Pedro Lelou, nomeado após ele, mas impedido de tomar posse, por estar sendo processado. Interinamente, Fernão Carrilho se saiu muito bem, vencendo os Paiacus e aldeando Anacés, e Jaguaribaras nas proximidades do forte.

Depois de empossado, Pedro Lelou não tardou que os moradores representassem contra ele, por excessos cometidos, e foi repreendido pelo próprio rei por ter criado postos no distrito do Ceará contra as ordens existentes. O maior serviço prestado por esse governante, foi ter escrito ao monarca em 1696 sugerindo a criação da primeira vila em território cearense.

Comandaram ainda o forte de Nossa Senhora da Assunção, em fins do século XVII, Fernão Carrilho e Francisco Gil Ribeiro. Os holandeses ao preferirem localizar o forte à margem do Marajaig, sobre o barranco ali existente, anteciparam-se aos portugueses no cumprimento de uma recomendação que o governador do Maranhão, Francisco Coelho fizera em carta de 6 de fevereiro de 1627, ao rei Felipe IV.


Extraído do livro “A Capital do Ceará”, de Geraldo da Silva Nobre.      

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Paula Ney, poeta e boêmio

 



Paula Ney foi aluno do Liceu e do Seminário da Prainha. Mas nunca gostou de estudar, era um aluno rebelde. Enquanto estudava no Seminário, costumava fazer discursos contra os antigos métodos de violência empregado para o aprendizado das matérias. Como resultado, foi expulso por mau comportamento. No Liceu, a história se repetiu, sendo reprovado por conta de grande desentendimento com um professor de inglês.

Por causa de sua inadaptação, foi mandado pelo pai para o Rio de Janeiro, para estudar Direito; a mãe preferia que estudasse Medicina; no final, Paula Ney não seguiria nenhuma dessas profissões. Iniciou-se no jornalismo na “Gazeta de Notícias”, participou de comícios pela abolição da escravatura ao lado de José do Patrocínio, além de escrever em favor da liberdade. Mas, para atender as expectativas da mãe, matriculou-se na Escola de Medicina, que pouco frequentava. Comparecia apenas para realizar exames orais, conseguindo sucesso pelas amizades com os professores e gozações nas respostas:

Diga ao menos quantos ossos tem o crânio de um homem ... – não me recordo professor... mas tenho-os todos aqui na cabeça. Fica satisfeito o primeiro examinador. Vai para avaliação do segundo:

vou fazer a primeira pergunta. Se o senhor responder nada mais lhe perguntarei, dar-me-ei por satisfeito. “Diga-me quantos fios de cabelo tem o senhor?”

- duzentos e sessenta e cinco mil oitocentos e novecentos e quatro...

- mas como o senhor chegou a essa conclusão?

- caro professor, não se esqueça que o senhor garantiu que só faria uma pergunta. Trato é trato.

E é aprovado em Anatomia. No exame de Cirurgia teve de se haver com o Visconde de Saboia. Nada sabe do ponto sorteado. Resolve então fazer literatura.

a mentalidade humana vive num oceano de hipóteses e de dúvidas... os sábios vão ao fundo, na ânsia das pesquisas, com o peso da inteligência...

- e a ignorância? Pergunta-lhe o Visconde.

- essa boia.

Mas essa vida fácil na Faculdade de Medicina não podia continuar eternamente. E foi ao prestar exame de Obstetrícia, com o professor Feijó Junior, que o fez dar por encerrada sua futura profissão de médico. Ao ser sabatinado, não conseguiu articular uma resposta, o que fez com que o professor dissesse: 

“senhor Paula Ney... então não sabe isso? É incrível, uma coisa tão fácil...olhe que o que estou lhe perguntando é coisa que sei desde que nasci..."

Ney então compreende que está perdido. E quebra o silêncio fazendo a sala explodir numa gargalhada: - se o senhor sabe isso desde que que nasceu, então a senhora sua mãe devia ter uma biblioteca dentro do ventre

Estava terminada a sabatina, e encerrado o curso para o aluno. Paula Ney nunca mais voltaria à Escola.

Francisco de Paula Ney, nascido em Aracati, no dia 2 de fevereiro de 1858, representa uma geração de poetas boêmios, despreocupada com a vida e com o futuro. Somente o prazer dos amigos, as rodas literárias e as serenatas faziam sentido nessa existência alegre e poética. Fazia versos nas mesas dos cafés, na primeira folha de papel que lhe viesse as mãos. Gostava de dar asas a imaginação, comentando os mais diversos fatos, passando de literatura para a política, da política para as artes, das artes para a prisão do último ladrão. Era um orador de alta classe, porque de pequenas coisas sabia extrair grandes motivos.

Em seu "Dicionário Bibliográfico", o Barão de Studart afirma que Paula Ney foi nomeado diretor da Hospedaria de Emigrantes pelo marechal Floriano Peixoto, e foi destituído do cargo pelo governo de Prudente de Morais. A trajetória de Paula Ney foi interrompida no dia 13 de outubro de 1897, quando faleceu vítima de tuberculose. Tinha 39 anos.






Os cafés da Praça do Ferreira, que Paula Ney provavelmente frequentou, e foto ilustrativa da Praia de Iracema dos anos 90.


Ao longe, em brancas praias embalada

Pelas ondas azuis dos verdes mares

A Fortaleza – a loura desposada

Do sol – dormita à sombra dos palmares


Loura de sol e branca de luares,

Como uma hóstia de luz cristalizada

Entre verbenas e jardins pousada

Na brancura de místicos altares


Lá canta em cada ramo um passarinho

Há pipilos de amor em cada ninho

Na solidão dos verdes matagais...


É minha terra, a terra de Iracema,

O decantado e esplêndido poema

De alegria e beleza universais

 

Extraído dos livros “A História do Ceará Passa Por esta Rua”, de Rogaciano Leite Filho e Fortaleza 1910, Imprensa Universitária/UFC. Publicação FortalezaemFotos. Fotos Wikipédia, Arquivo Nirez e acervo particular. 

 

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Porto Canoa o Resort abandonado de Aracati

 



A promessa é que seria um megaempreendimento à beira-mar, no aprazível litoral de Aracati, nível internacional, com capacidade para receber até 1.100 pessoas. O projeto contava com salão de convenções, auditório com capacidade para 130 pessoas, salas de apoio para a realização de eventos, dois restaurantes, parque aquático, piscinas, lojas, um hotel resort 5 estrelas com 166 apartamentos, uma pousada com 20 apartamentos e três condomínios num total de 96 apartamentos.

O local denominado Porto Canoa foi inaugurado em 1996, com boa parte construída, iniciativa do empresário Clodomir Girão e aporte de capital de sócios estrangeiros. Seria o primeiro grande empreendimento hoteleiro de Canoa Quebrada, mais próximo, porém, da Praia de Majorlândia.  O projeto se arrastou por 10 anos, sem se estabilizar. Os investimentos ficaram escassos e houve debandada dos investidores estrangeiros. O resort nunca chegou aos 100% de ocupação e decaiu mais ao longo do tempo. O Porto Canoa mostrou-se um retumbante fracasso.

Hoje quem passa no sentido Leste a partir de Canoa Quebrada em direção a praia de Majorlândia se depara com os restos da construção: a parte do empreendimento que corresponde ao condomínio de apartamentos adquiridos por particulares, ainda está lá. São três blocos de apartamentos de tamanhos variados, regularmente ocupados, geralmente no sistema de aluguel por temporada, em local isolado, com praia privativa, mas sem acesso, sem infraestrutura por perto, e bem longe dos atrativos da famosa Vila de Canoa Quebrada.

O resto é abandono. As únicas vizinhas são as ruínas e a solidão. A começar pelo acesso pela praia ao resort, uma via em mau estado, cheia de mato, deserta e solitária. À noite, é de se esperar que a escuridão tome de conta. (tem acesso também pela CE 371). As ruínas das construções ficam dos dois lados da estrada, prédios, piscinas, colunas, pisos, azulejos, testemunhas do enorme desperdício de recursos empregados no malogrado projeto hoteleiro, que pretendia ser o maior da região.

De bom e bonito, restam a paisagem natural, o mar verde esmeralda de Aracati, as belas praias e alguns coqueiros, que felizmente não dependem nem dos recursos nem da (falta de) competência de nenhum empreendedor, e continuam formosas. Apesar deles.  


 






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