quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

As Primeiras Visitas ao Ceará


A primeira notícia oficial de impacto e de realce histórico referente ao Ceará, após o descobrimento do Brasil, seja por Pinzon ou por Cabral, aparece pouco depois de um século, em 1603, quando Pero Coelho de Souza, homem nobre e fidalgo, casado, soldado velho, resolveu, por sua conta e risco, organizar uma bandeira para recuperar os prejuízos que amargou em consequência de uma desastrada parceria com seu cunhado, Frutuoso Barbosa, então donatário da Capitania da Paraíba.


Pretendia, conforme acerto com o então governador geral Diogo Botelho, procurar  minas de ouro e prata, expulsar os franceses que desejavam montar a França Equinocial no Maranhão e estabelecer a paz com os nativos. Não alimentava qualquer pretensão civilizatória.

Saiu da Paraíba a pé, rumo ao Maranhão, acompanhado de uma comitiva formada de 65 soldados (entre eles o jovem Martim Soares Moreno) e 200 índios frecheiros (ou mansos, já sob domínio do conquistador), até atingir, dias depois, a foz do Rio Jaguaribe, onde, após um reconhecimento preliminar da região, identificou uma área rica em salinas, grande quantidade de âmbar e algodão.

Deu prosseguimento à sua expedição até atingir a Ponta do Mucuripe, rumando depois, em direção à Ibiapaba, quando travou combates com os índios tabajaras e comandos franceses, então aliados dos nativos. Derrotando-os, mas sofrendo consideráveis baixas, retomou sua viagem em direção ao Maranhão, atingindo o rio Parnaíba, no Piauí, quando, em razão de seus homens estarem exaustos, esfarrapados e famintos, decidiu retornar ao Ceará.

Estabeleceu-se na Barra do Ceará, onde levantou um pequeno forte, chamando-o de São Tiago. A região em redor chamou de Nova Lusitânia, que imaginava um dia ser a Nova Lisboa, a capital. Nos seus relatos, Pero Coelho refere-se várias vezes ao algodão, “uma planta que aparece por todos os lados”.

uma cruz assinala o local onde esteve o desaparecido forte de São Tiago, na Barra do Ceará (foto do arquivo Nirez)

A presença de Pero Coelho de Souza nesse lugar, formado por uma tosca paliçada de paus de quina e umas poucas casinhas de taipa, foi rápida. Seguiu para Recife, a fim de recolher sua mulher Thomazia e seus cinco filhos, para se estabelecer definitivamente em São Tiago. Em seu lugar, deixou Simão Nunes Correia e cerca de 50 homens. No contrato que fez com o governador, recebia 1 mil cruzados ao mês, que lhe seria repassado por João Saromenho.

Um ano e meio depois de sua saída da Paraíba, acompanhado de outros 50 homens, já com a família, viajando numa caravela, Coelho de Souza chegou a São Tiago, e logo percebeu que o relacionamento entre seus soldados e os índios estava deteriorado. Era o resultado da rigorosa obediência que cobravam dos índios. Para impor sua autoridade, implantou o ódio e a discórdia.

É-lhe atribuída a pecha de sanguinário, tendo sido acusado e responsabilizado também pela morte de índios. Até hoje a historiografia do Ceará não entende as razões pelas quais Coelho de Souza exagerou nas suas obrigações. Sua presença em Itarema ou na Barra do Ceará não gerou consequências.

Instigado pelo inimigo e por isolados franceses que ainda se achavam na região, decidiu mudar-se para o outro lado do Estado, para a foz do Rio Jaguaribe. Existem, entretanto, duas outras razões que forçavam sua retirada de São Tiago: o assédio constante e cada vez mais agressivo dos índios locais – Tremembés – e uma rigorosa seca (1605-1607) que assolava o Ceará. Sua retirada era questão de sobrevivência.

Para completar, João Saromenho não lhe pagava. Denunciado, este foi julgado e condenado por não ter pago os soldos do seu superior. Cumpriu pena de detenção na prisão de Limoeiro, em Lisboa, onde morreu.

Estrada em jaguaribe. (se era assim nos anos 1960, imagine em 1600...) foto IBGE
 
A viagem de Pero Coelho de Itarema ou da Barra do Ceará para a foz do Jaguaribe coincidiu com o auge da estiagem, em 1606, cuja mortalidade atingiu índices catastróficos. Os rios e reservatórios naturais de água estavam secos, as matas ciliares murchas, produzindo um quadro dantesco de miséria, fome e desespero. Pelas trilhas espalhavam-se as marcas da destruição com dezenas de carcaças de animais.

Havia gente caminhando sem destino, pelas trilhas sem fim. Faltava água e alimentos, as doenças se proliferavam com rapidez. Para completar a dramaticidade do quadro, apareceu nos céus o cometa de Halley, que os índios chamavam de “tata-bebe”, ou fogo voador, de acordo com o registro feito pelo padre missionário Luiz Filgueira no seu diário pessoal. O temor era procedente. Os cometas eram considerados pelos antigos como fenômenos atmosféricos. Nenhum outro fenômeno celeste despertou tanto interesse como os cometas, talvez por inspirar aos povos antigos, terror e superstição.

Em sua dolorosa viagem, Coelho de Souza enfrentou os momentos mais cáusticos da seca, perdeu alguns soldados e o seu filho mis velho, que morreram de inanição, de fome e de sede. Thomazia, mulher frágil, chegou ao Jaguaribe esquelética, transportada numa espécie de maca, quase morta. Mas resistiu. 
Forte dos Reis Magos em Natal RN (imagem blog AratacAndarilho)

Do Jaguaribe, com pouco mais da metade dos 50 homens que tinham iniciado a triste jornada, Coelho de Sousa deslocou-se até o Forte dos Reis Magos em Natal, depois à Paraíba, onde embarcou para Lisboa. Na Corte fez um relato dramático das suas andanças pelo Nordeste brasileiro, na perspectiva de receber uma indenização pelos seus serviços. Não sensibilizou ninguém, porque todos conheciam sua impetuosidade. Martim Soares Moreno, que o acompanhara na primeira bandeira como soldado, registrou na sua Relação, sem identificar nomes, que “ali (em São Tiago) houve muito desassossego dos índios sem razões”.

Morreu sem receber nada, devido ao insucesso de sua missão fracassada, da mesma forma como fracassou a primeira tentativa de colonização do Ceará. 


Extraído do livro
Caravelas, Jangadas e Navios uma história portuária
de Rodolfo Espínola

Nenhum comentário:

Postar um comentário