Travessa estreita próxima ao centro de Juazeiro. Do alto
da janela a imagem do Padre Cicero observa o movimento da rua. Sob seus pés,
uma escadinha quase vertical se balança atada a uma corrente de ferro, e por
ela, o mestre galga todas as manhãs o pequeno sobrado. No andar de cima, móveis
desgastados, alguns instrumentos de trabalho, toras e lascas de madeira brigam
por espaço entre as paredes volumosas de onde pendem um grande relógio e o
retrato de Lampião. Aproveitando a réstia de luz que entra pela janela,
Inocêncio da Costa Níck, o Mestre Noza, trabalha.
Veias de sangue mouro e índio, cortando calos e
músculos. Noza encalca a ponta dos dedos na banda cega do gume do canivete, e
com sua lâmina abre dois vincos profundos no rosto de Padre Cícero. Em seguida,
levanta os olhos e pega outra peça de imburana de espinho, arrancada da Serra
de São Pedro, ali perto.
No Cariri chama-se de imaginário quem fabrica imagens.
Noza é um deles, como um velho bruxo de mãos desmesuradas que trabalharam no
cabo da enxada desde os dez anos. Em 1912 virou romeiro do Padim Ciço. De ofício
experimentou a funilaria e a marcenaria, mas não deu certo. Até que, com 22
anos, um velho imaginário que tinha fama de louco lhe ensinou a esculpir
imagens. Sua primeira escultura foi uma Santa Luzia. Trocou-a por um carneiro.
Um dia, contou Noza, um padre italiano chegou e viu um
São Sebastião, disse – esse santo não existe, foram vocês que inventaram. Desde
então, todos os santos são inventos do imaginário e Noza foi o primeiro a fazer
uma estátua de Padre Cicero. Um dia, escolheu a mais bonita e foi mostrar para
o Padim. O “santo” pegou a imagem e fez uma cara de quem está achando
esquisito. Disse: “menino, eu já tenho essa corcunda assim?”
Aprendeu Noza a fazer xilogravuras e abriu muitas
capas de cordel, como a do homem do maxixe e a dos cantadores. “Eu faço
Lampião, Maria Bonita e Antônio Conselheiro, nunca fui empregado de homem
nenhum. Noza bate nos peitos e sorri meio sem jeito, e tenta explicar seus
passeios noturnos “penso que na outra encarnação eu era um bicho da noite. Um bicho
branco e muito bonito reluzindo no escuro, andando nos caminhos sem fim da mata
e entrando pelas ruas esquecidas da cidade”.
Mestre Noza morreu em 1983, aos 86 anos de idade.
fonte: O Ceará dos Anos 90 - Censo Cultural
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