Sertão cearense, 1889. A angústia marcava o rosto da
população com a chegada de março e sem sinal de chuva. Temia-se que aquele
seria mais um ano de seca – que foi de fato. Em Juazeiro do Norte, beatas
varavam noites clamando aos céus para livrar o povo de mais uma estiagem. Entre
as mulheres, havia uma, humilde, de 28 anos, frágil, solteira, mestiça
com predominância do negro, estatura mediana, analfabeta, chamada Maria
Madalena do Espírito Santo de Araújo.
Casa onde morou o Padre Cícero
Por volta das 5 horas da manhã do dia 1° de março de 1889, Padre Cícero, com pena das beatas cansadas, resolveu lhes dar logo a comunhão, a fim de que pudessem retornar às suas casas e repousar um pouco antes da missa matutina. A primeira a comungar foi Maria de Araújo. Quando o padre colocou a hóstia sobre a língua da beata, esta veio ao solo de forma inexplicável, em transe. Socorrida, verificou-se que a hóstia vertia sangue na boca da mulher. Era um milagre!
O fenômeno se repetiu várias vezes
nas semanas seguintes. O Padre Cícero calou-se e manteve o ocorrido em
segredo. Mas a notícia logo se espalhou e chegou ao conhecimento do reitor do
Seminário do Crato, monsenhor Francisco Monteiro, que resolveu organizar em
julho de 1889, uma romaria com mais de três mil pessoas com a intenção de
observar o fenômeno. O milagre de Juazeiro tornara-se público.
Dada a enorme repercussão do fato, o bispo
Dom Joaquim, de Fortaleza, convocou Padre Cícero com urgência e, após interroga-lo,
rejeita a ideia de que a hóstia se transformara no sangue de Cristo. Determina
que o sacerdote e outros padres, igualmente
crentes no milagre, neguem em público a existência do fenômeno e que
cessassem imediatamente com a veneração dos panos manchados de sangue, os quais
haviam sido colocados dentro de uma urna de vidro no altar da capela de
Juazeiro.
Por conta do milagre, tanto o Padre Cícero quanto a beata foram
duramente combatidos pela cúpula da igreja que não reconhecia a autenticidade
do fenômeno. A beata foi deslocada para a cidade de Barbalha e Padre Cícero,
foi denunciado e julgado pelo Santo Ofício, em Roma que manteve as sanções que já
haviam sido aplicadas ao sacerdote pelo bispo local: condenação do milagre, proibição de pregar,
ouvir confissões, aconselhar fiéis, ministrar comunhão, etc; mas lhe permitiu
regressar para Juazeiro e, dependendo da concordância do bispo cearense, voltar
a celebra missa. Padre Cícero retornou a Juazeiro em dezembro de 1898. O bispo
D. Joaquim temendo uma revolta popular, concedeu licença para o padre celebrar
missas, menos em Juazeiro e nas vizinhanças. O sacerdote jamais conseguiria se
reconciliar com a igreja.
Rua Padre Cícero, onde morou e ficou isolada em sua
própria casa, por ordem do bispo Dom Joaquim, a beata Maria de Araújo
A beata Maria de Araújo ficou a partir de 1892, por
ordem de Dom Joaquim, o bispo da época, segregada dentro de sua própria casa,
sem poder receber visitas. Era também proibida
de falar sobre as suas visões e estigmas. Passou por julgamentos, exames de
cientistas, e não deixou de negar as suas convicções em relação ao sangue que
expelia de sua boca, ser algo sobrenatural. Ela dizia conversar com Jesus. Até o
final de sua vida, a mulher negra, pobre, costureira, beata, permaneceu em sua casa
no final da rua Padre Cícero, no Centro de Juazeiro, antiga rua do Arame.
Capela do Socorro em 1941
Quando faleceu, em 1914, foi sepultada em um túmulo branco
à direita da entrada da capela do Socorro, mas devido a movimentação constante
de romeiros no local, a igreja foi fechada por ordem do bispo. Quando foi
reaberta, veio a surpresa: o túmulo da beata fora violado e seus restos mortais
desapareceram. O mistério do desaparecimento perdura até os dias atuais.
Monumento ao Romeiro
Ainda hoje o milagre de Juazeiro provoca polêmica.
Para os milhares de devotos do padre Cícero, não restam dúvidas sobre a
autenticidade; já a Igreja Católica, o
recusou fortemente. Há quem afirme ser o chamado milagre um fenômeno
paranormal, fruto da fé exacerbada da beata Maria Araújo. Levantou-se ainda
hipótese da beata ser portadora de alguma doença (infecção bucal ou no
estômago), o que não tem fundamento, tendo em vista que a mulher foi examinada
por vários médicos, que nada encontraram.
No entanto, o argumento mais forte contra o milagre de Juazeiro envolve João
Teles Marrocos, primo do Padre Cícero. Marrocos nasceu no Crato em 1849, filho
do Pe. João Marrocos Teles com uma escrava negra. Professor e jornalista, foi
um dos mais destacados participantes da campanha abolicionista de 1884. Teve na
vida uma grande frustração: não ter se ordenado padre, expulso do seminário em
razão de sua origem “escandalosa”. Apesar disso, manteve-se como católico
fervoroso, dedicando-se às orações, auxílios aos pobres e assuntos da Igreja.
Colocou todo seu talento jornalístico a serviço da propaganda e defesa dos
fatos de Juazeiro, escrevendo vários artigos na imprensa nacional.
Acusam
Marrocos de ser o autor intelectual do milagre. Fora ele, de fato, quem furtara
uma urna de vidro no Crato, contendo os restos da hóstia e os panos manchados
de sangue. Guardou esses bens como uma verdadeira relíquia sagrada, enfrentando
a excomunhão da Igreja. Com o seu falecimento em 1910, a urna foi encontrada no
espólio pelo juiz Raul de Sousa Carvalho, junto com um livro escrito em francês
ensinando a fazer tinturas químicas, o qual teria sido utilizado pelo falecido,
para transformar as hóstias em sangue.
Ao que parece, Marrocos haveria forjado
o milagre para unir os fiéis em torno da igreja naqueles tempos conturbados de
seca e de passagem para a República, laica e positivista. Os defensores do
milagre reagem contra essa versão. Observam que a notícia da descoberta da urna
só se tornou pública em 1953, quando o juiz Carvalho publicou artigo em um
jornal de Fortaleza. O jurista não informou, porém, o nome do livro de química.
Especula-se que poderia ser D’Analyse Chimique. Mas este livro só seria
publicado em 1903, depois, portanto, do fenômeno. Para os adeptos do Padre
Cícero, Marrocos usava o livro apenas para saber se era possível fazer a
transformação pela ciência e escondeu os paninhos não por temer a descoberta de
uma possível farsa, mas por temer que a prova da santidade fosse destruída ao
cair em mãos inimigas.
Não estava longe de fato da verdade. A urna acabou sendo
passada para Padre Cícero que a guardou na casa de uma beata de Juazeiro. Em
1948, a professora Amália Xavier, na expectativa de mostrar Juazeiro como uma
terra obediente ao Clero, entregou os panos ao monsenhor Joviniano Barreto, então
vigário da cidade. Este religioso imediatamente mandou queimar a urna, como se
tentasse jogar o milagre nas malhas do esquecimento, o que obviamente, não
aconteceu.
extraído do livro de Aírton de Farias
História do Ceará
fotos: IBGE e jornal O Nordeste
fotos: IBGE e jornal O Nordeste
Um documetário perfeito. Parabéns amigo.
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