quinta-feira, 17 de abril de 2014

A Festa dos caretas


Sexta-feira da Paixão em Jardim. São 9 horas da manhã e a cidade está coalhada de pequenos altares em frente às casas. Mesinhas cobertas de branco que aguardam. Silenciam. Anseiam pela passagem da Via-sacra saída da igreja anunciando o calvário do Senhor. Finda a Via-sacra, um ruído alegre chega. Por todos os lados, badalando. Não são sinos. É o dia do ato penoso da Paixão. Não se pode tocar sino. Mas são chocalhos, que matracam, que badalam. No ritmo do molejo dos quadris. Que passam pendurados em cinturões de couro atados à cintura. Que são a marca registrada de estranhas figuras mascaradas que povoam a Semana Santa de Jardim. As mais estranhas caras: cara de tapete; cara de couro de tiú; cara de couro de tamanduá; cara de saco; cara de surrão; de caixa de papelão, de camisa pintada; de borracha. Cara de Hulk, de ninja, de Fantasma, de caveira. E para enfeitar as caras tem cabelos de Wanderléa, óculos escuros, chapéu, paletó e gravata. Macacão, tecido colorido, colcha e farrapos. Cada um inventa sua nova cara. Se mascara, e se chama de careta. É a festa dos caretas. 

 imagem: http://caririwebnoticias.blogspot.com.br/

Tem quem sinta saudade de antigamente, do tempo do eu-menino-que-tem-medo-de-careta. “de primeiro não tinha um menino perto do careta. Quando via um careta parece que via era o cão. Do tempo que o careta andava com uma macaca (chicote) e bastava a gente bulinar com ele gritando: careta, a rabichola caiu, que eles partiam com a macaca pra riba da gente. Aí o cabra pode descolar as pernas porque se não for bom corredor, apanha muito”. 

 foto antiga de Jardim

Tem quem sinta saudade do tempo de antigamente. Mas a maioria é unânime em concordar que a cada ano que passa a festa é maior e mais bonita. Antes a festa era só na zona rural. De 14 anos para cá a festa ganhou a cidade, hoje tem festa no campo e na cidade. A caretada do campo desce para brincar na cidade. O negócio é comer, brincar, roubar e palestrar. É Sexta-feira da Paixão e ao anoitecer sai a procissão do Cristo Morto. Nenhum careta na rua, nenhum chocalho. Apenas a matraca. Apenas a irmandade do Santíssimo fazendo companhia às dores da Senhora das Dores coberta em seu manto roxo, vendo o filho em frente deitado, morto. Uma banda soleniza a procissão marcando o compasso de cortejo fúnebre. Cai uma chuva fina, a rua fica lotada de guarda-chuvas, em sua maioria negros, guardando o luto do Criador. Às seis e meia as imagens retornam, ficam expostas na Igreja de Santo Antônio. As pessoas entram e beijam o sofrimento de Jesus e Maria. Depois a matriz cerra as portas. Só abrirá na passagem do sábado para domingo.
No sábado de noitinha, a rua está calma, a lua está nascendo. É a cheia. Os andores com os Judas já estão em frente à Associação dos Caretas. Aguardam ansiosos a tão esperada procissão. Tem sanfoneiro, zabumbeiro, pandeiro e triângulo; tem porta-estandarte, carro de som e não faltam os caretas para carregarem o compadre Judas para uma voltinha na cidade. quando volta, o Judas assume a posse do seu sítio. Fica no seu mastro, hasteado, olhando a cidade do alto, aguardando o calvário.

 imagem:http://www.narotadasnoticias.com.br/

E é só as cinco e meia da tarde que o Judas e os cartas sairão pela última vez na cidade. o cortejo é semelhante ao da noite anterior, muito animado, cheio de caretada, música e chocalho. De volta ao sítio é lido o testamento de Judas que vai deixando um a um seus pertences. Depois é enforcado e cai das alturas. Seu corpo é estraçalhado. O Judas é comungado pelos caretas, um pouco do traidor-traído fica em cada homem. Fim de festa. Caem as máscaras, somem os caretas, voltam os homens. Mai s uma vez a cidade foi testemunha da forte significação social dessa tradição do Cariri.


Extraído do Ceará dos Anos 90 – Censo Cultural     

Um comentário: