quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O Ceará antes de 1877


Um constante estado de isolamento e pobreza material seria uma das características principais da evolução histórica do Ceará. No contexto colonial, a então Capitania do Siará Grande se resumia, até meados dos anos 1700, num pequeno forte desguarnecido, esquecido pelas autoridades de Lisboa. Somente durante o século XVIII, quase dois séculos e meio depois da chegada dos portugueses à colônia, é que as primeiras vilas foram criadas. Até esse período, a vasta região sertaneja tinha sido palco de lutas sangrentas entre o colonizador branco e o nativo, num processo que culminou com a destruição do mundo indígena.

Aracati e o cruzeiro da matriz (arquivo Nirez) 
O Ceará ficou atrelado à Capitania de Pernambuco até 1799, quando então foi considerada capitania autônoma pela corte de Portugal. A leitura de antigos relatórios revela que essa autonomia não chegou a representar uma evolução significativa para a maioria da população. É verdade que algumas medidas chegaram a ser propostas pelos seus governadores, mas foram ignoradas pelo reino de Portugal.
A evolução econômica do Ceará foi marcada pela realização de dois ciclos de riqueza, os quais não se excluíam, antes apareciam como complementares: o do gado e do algodão. A pecuária foi a grande responsável pela expansão colonizadora pelo sertão e pela conquista avassaladora das antigas povoações ocupadas pelos indígenas.

 colheita do algodão (foto IBGE)

Até 1780, a grande riqueza da capitania vinha dos rendimentos das charqueadas, principalmente em vilas como Aracati e Granja. A cultura do algodão se intensificou no final do século XVIII, aparecendo como riqueza predominante no século seguinte. Todos esses ciclos de riqueza econômica só beneficiaram uma pequena minoria composta pelos proprietários de terras e donos de oficinas de charque. A maioria da população, para sobreviver, tinha que ficar sujeita a um desses proprietários, servindo como agregado, vaqueiro, parceiro, ou simples empregado. A população escrava, por sua vez, era diminuta.


O resultado é que boa parte dos habitantes do sertão não conseguia ser aproveitada nas atividades econômicas. Esse modelo socioeconômico excludente tinha sido estimulado pelas autoridades de Lisboa. Para garantir a colonização de áreas do Novo Mundo, a Coroa delegou aos fidalgos e outros membros da elite metropolitana a tarefa de conquistar o território. Em troca o rei distribuiu sesmarias e concedeu títulos e benefícios aos vencedores de batalhas contra os nativos. Dessa forma, grandes áreas do território cearense foram entregues a poucos indivíduos que, em pouco tempo, tornaram-0se potentados rurais, verdadeiros formadores de reinos particulares em regiões distantes do poder régio.
As camadas rurais, sem posses ou prestígio, ficaram cada vez mais dependentes da proteção de um senhor. Este, num primeiro momento, agiu praticamente sem a interferência da administração portuguesa, impondo com vigor suas leis e normas severas, dominando com mão de ferro a população subjugada. 
No decorrer do processo inicial de colonização, houve uma inquestionável supremacia do poder privado sobre o poder público. É verdade que a criação das vilas e o fortalecimento das instituições reais contribuíram para o enfraquecimento desse poder, mas mesmo assim, o chefe local continuaria como líder diante de um grande número de pessoas iletradas, pobres  e sem perspectiva.

 Casa de colono no interior do Ceará (foto IBGE)

Oferecendo proteção e abrigo a essas pessoas, e ao mesmo tempo exigindo fidelidade e lealdade, os senhores da terra reproduziram, nas longínquas áreas do sertão, o sistema paternalista e clientelista que já os tinha beneficiado no processo de aquisição de sesmarias, cargos e direitos reais.
A consolidação do modelo paternalista tornava as populações rurais cearenses meras coadjuvantes no processo histórico. A camada dominante, por sua vez, pouco se importava com grandes inovações econômicas, ou era avessa à difusão de ideias revolucionárias, não obstante setores da elite, terem adotado um discurso de inconformismo e repúdio ao poder centralizado. 
As lutas que sangraram o território cearense no período da Independência do Brasil e as que levaram à Confederação do Equador (1824) e à Sedição de Pinto Madeira (1832) se desenvolveram principalmente no seio das classes consideradas dirigentes ou foram impulsionadas por elas.

 fazenda no interior do Ceará (foto IBGE)

A Lei de Terras (1850) foi outro fator que contribuiu para consolidar o poder da minoria proprietária. Os índios, dispersos e misturados, no meio da população geral, foram definitivamente alijados dos seus direitos. O acesso à terra passou a ser controlado e forma rígida, evitando a apropriação pelos pobres, de áreas ainda sem aproveitamento. Ao mesmo tempo, os fazendeiros passaram a pressionar cada vez os governos provinciais, no sentido de garantir leis para inibir a vadiagem.
As relações sociais no Ceará do século XIX foram marcadas assim, por uma situação de intensa desigualdade. De um lado, o proprietário, senhor absoluto. De outro, o morador, o agregado, o escravo. Na fazenda de criação, o vaqueiro agia em nome do seu chefe, normalmente seu compadre e protetor. Nos algodoais, o sistema predominante foi o da parceria, prática bastante intensa da segunda metade do século.

Os grandes proprietários, naturalmente, também cobravam de uma forma ou de outra, pelo uso de benfeitorias existentes na terra, como os açudes, por exemplo. Desenhava-se assim, um quadro no qual ficava clara a vulnerabilidade da imensa maioria dos sertanejos. Pressionados pelos donos de fazenda, os agricultores tinham pouco tempo para dedicar-se às suas culturas de subsistência, chegando em certos momentos a depender diretamente dos mesmos, no que se refere à alimentação diária. O paternalismo e a rigidez dos latifúndios sufocavam o agregado, impossibilitando sua independência e a melhoria de sua situação econômica e a da sua família.

Extraído do livro de Cicinato Ferreira Neto
A Tragédia dos Mil Dias: a seca de 1877-79 no Ceará

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